Penisolate e uísque orvalhado

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Carlos Eduardo Pinto Carvalheira






IV Jornada da Escola Freudiana de João Pessoa - João Pessoa, 03 e 04 de dezembro de 2004









INTRODUÇÃO ÀS EPIFANIAS DE JOYCE







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Que importa nossa covardia se há na terra



um único homem valente,



que importa a tristeza se houve no tempo



alguém que se disse feliz,



que importa minha perdida geração,



esse indefinido espelho,



se teus livros a justificam.



Eu sou os outros. Eu sou todos aqueles



que teu rigor obstinado resgatou.



Sou os que não conheces e os que salvas.



Jorge Luís Borges - Invocação a Joyce



















Em Borges percebe-se o valor epifânico da arte de Joyce: “Eu sou os outros... Sou os que não conheces e os que salvas”.







Antes de Joyce a epifania na literatura parecia significar apenas o óbvio: uma obra ou parte dela, onde se narrava o episódio da revelação. No dicionário de Aurélio, entre outras significações, as duas palavras se confundem:







Epifania – aparição ou manifestação divina; festividade religiosa com que se celebra essa aparição; dia de reis;







Revelação – entre os cristãos, ação divina que comunica aos homens os desígnios de Deus e a verdade que estes envolvem, sobretudo através da palavra consignada nos livros sagrados.







Foi James Joyce quem trouxe do pensamento tomista [1] o conceito de epifania para a literatura. Ela se dá pela integração entre: integritas, consonantia, claritas e quidditas. [2]





A partir desses conceitos filosóficos, Joyce define com simplicidade a epifania em “Stephen Hero”: “uma manifestação súbita, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma frase memorável da própria mente. Ele acreditava que cabia ao homem de letras registrar estas epifanias com um cuidado extremo, visto que elas mesmas são os momentos mais delicados e evanescentes” .







Para Joyce, o estado epifânico do artista seria um luminoso êxtase silencioso de prazer estético: “um estado espiritual muito similar à condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, servindo-se de uma frase tão bonita quanto à de Shelley, chamou de encantamento do coração.” [3]







Affonso Romano de Sant’Anna, inspirado em Joyce, define que epifania em literatura “significa o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade atordoante, quando os objetos mais simples, os gestos mais banais e as situações mais cotidianas comportam iluminação súbita na consciência dos figurantes, e a grandiosidade do êxtase pouco tem a ver com o elemento prosaico em que se inscreve o personagem.” [4]







Os críticos comentam que as epifanias de Joyce são tão vazias que não conseguem efetuar uma certa transmissão mística, pela via poética – elas representam um fracasso, muito mais um resíduo do que sua expressão. Discordo. Já li crítica similar a Clarice Lispector, por abordar o real, o inatingível. Até escritores que admiram Joyce dizem que os seus monólogos, embora grandiosos, são falhos porque são desordenados. Pensem... o fluxo da consciência ser bem disciplinado, organizado... Mas é no “vazio” das epifanias que se faz arte, e esse nada está repleto de algo que não pode ser dito, a não ser por efeito de sentido. Grande parte de suas epifanias são libertárias, quebram ilusões, e dessa queda, desse dejeto, a verdade é deslumbrada pelo subterfúgio do que parece a alguns – epifanias ocas de sentido.







Do “Retrato do Artista quando Jovem”, obra-prima do romance autobiográfico que tem como herói Stephen Dedalus, alter ego de Joyce, tentei dividir as suas epifanias em:







Sublimatórias – quando há um movimento de ascensão ou sublimação do ser: “a vida tornava-se um dom divino, e da qual cada momento e cada sensação, mesmo a vista de uma simples folha desabrochando no broto de árvore, a sua alma se agradaria, agradecendo ao doador” [5];







Libertárias – por meio da quebra de ilusões, se necessário partindo para as apostasias mais contundentes: “Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria ou minha igreja; e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza” [6] ; e







De encantamento – pura estética, pura forma. Essa idéia é dada quando em “O Retrato...” Stephen descreve a Lynch: “o artista, como o deus da criação, permanece dentro ou atrás ou além ou acima de sua obra invisível, clarificado fora da existência, indiferente, aparando suas unhas”.



“Fruto maduro” é um exemplo de Epifania sublimatória. No “Retrato...”, Stephen se envolve numa forte discussão com três condiscípulos, sobre quem seria o maior poeta. Mesmo sendo espancado por esses colegas ele, imbuído por uma ética[7], sustenta ser Byron o maior poeta, não confessando – como eles queriam – que “Byron não prestava”. E o ódio que ficou por ser surrado, ele sublima por meio de uma ilusão artística:







... “tinha sentido que havia uma força oculta, que lhe ia tirando a capa de ódio acumulado, em um momento, com a mesma facilidade com que se desprende a casca (ou pele, peel) suave de um fruto maduro.”







Ao mesmo tempo em que Stephen tira de si suavemente o sentimento de ódio acumulado – como a pele de um fruto maduro –, deixa para trás as pessoas que o surraram. Pela arte da palavra metaforizada, esse sentimento se desprende e ele se eleva, amadurece.







Comenta Freud em “Totem e Tabu”:







“Somente na arte ocorre que um homem devorado por seus desejos faça o que se assemelha a uma satisfação e que graças à ilusão artística, esse jogo produza uma ação sobre os afetos, como se fosse algo de real.”







Mario Quintana, grande poeta brasileiro, compôs uma epifania que se assemelha à de Joyce. Depois de ter perdido a terceira indicação para a Academia Brasileira de Letras, ele compôs o célebre “Poeminha do Contra”:







“Todos esses que aí estão



atravancando meu caminho,



eles passarão...



eu passarinho!”







O poeta sublimou também o sentimento de desgosto e talvez de ódio. Bastava apenas esse “poeminha”, para imortalizar toda a sua obra.







O que Quintana diz por “efeito de sentido” percebe-se em “eles passarão” (o sentimento de mágoa e as pessoas que não o aceitaram na ABL). E ele – feliz como passarinho, dando seus vôos artísticos.







Pode-se ir mais longe na elaboração :







Ao som de passarão e passarinho, a obra do poeta se imortaliza. O verbo se faz carne literalmente: passarão se transforma em pássaro grande, velho, beirando a morte e passarinho, ao mesmo tempo, torna-se um verbo inconjugável: passar-inho – a poesia se revela, realizando o desejo do escritor – morrer e ser imortal.







Da magia dessas epifanias de Joyce e Quintana, o verbo se faz carne [8] – os frutos amadurecem e os pássaros voam.







Joyce se utiliza de efeito de sentido ao quebrar a ilusão de um amor casto, na seguinte epifania libertária:







Ao virar uma esquina em Dublin, incidente corriqueiro segundo Joyce, ele ouve um diálogo que lhe inspira as estrofes “ardentes” da “vilanela” da sedutora, que se pode ler no “Retrato”:







“Uma jovem está nos degraus de uma casa, conversando com um rapaz:



Moça (falando discretamente) – Ah, sim... eu estava ... na... ca... pe... la...



Rapaz (sempre muito baixo) – ... Eu... ... eu...



Moça (com doçura) – Ah... mas... você é... mui... to... mal... do... so. ”







Percebe-se que Joyce em suas epifanias quase sempre joga com luz e trevas, pureza e pecado, céu e inferno.







Uma jovem balbucia – e a palavra capela (chapel) envolvida pelo desejo, fende-se em duas:



Chap – fender-se, abrir-se, gretar-se, entregar-se;







El – vara, antiga medida de comprimento.







Da palavra capela, que significa pureza, oração, amor – a jovenzinha sem querer querendo revela-se falhando – escancara inesperadamente o seu desejo: abrir-se, entregar-se... Surge o confronto entre amor e paixão, pureza e luxúria, santidade e pecado. A capela rui e a bela jovem dá luz a outro texto. Da trivialidade de uma palavra balbuciada, emerge a malícia conivente, pura, gostosa e sórdida: nela – o mal... do... so... de... se... jo; nele – alumbramento e gozo (o que quer de mim esse anjo diabólico que candidamente me seduz? )







O efeito de sentido surge exatamente da inesperada queda do objeto a. Na cândida jovem emerge o ardente desejo da mulher não-toda na função fálica: “sou a carne que sempre diz sim”. [9]





Eis mais um enigma de Joyce, ao utilizar uma palavra-valise – chap / el – que os críticos não conseguiram desvendar.







Na maioria das epifanias, Joyce parece denunciar a existência de um amor impossível, inatingível: semblant’amour – portanto não só difere, mas contrapõe-se radicalmente ao que Catherine Millot fala sobre a busca do “místico” que tenta inscrever sua experiência no discurso religioso suscetível de lhe dar um sentido. Suas epifanias, principalmente as de libertação e encantamento[10], não pretendem levar mensagens de “auto-ajuda”. Em Joyce, não há comunhão de idéias nem desejo narcísico de identificação do leitor, ao contrário, ele espera a singularidade de cada um.







Muitos críticos não percebem o encanto das epifanias, mas tive a grata satisfação de ler “A escritura começa onde a psicanálise termina”, de Serge André:







“Dar corpo a este “nada dizer” ou a esta abertura da linguagem, é talvez a tarefa mais importante da escrita, uma tarefa quase sagrada, cujo monopólio lhe pertenceria. Este nada – que não é ausência de algo, mas pelo contrário a presença maciça do que escapa à categoria “algo”, posto que depende, por natureza, do que não pode ser dito sem ficar automaticamente marcado pela denegação da palavra – será esse o obscuro objeto do desejo de escrever?”







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Quem elevou a língua ao nível da Coisa, deve ainda dar provas de seu amor pisoteando-a, estripando-a, esmiuçando-a até as migalhas para extrair dela a única singularidade quando ela não é outra coisa senão uma massa informe, nem sequer um grito, apenas um esforço.”







E finalmente, as epifanias de encantamento – penisolate e “uísque orvalhado”.







E nessa parte do trabalho, por se tratar de algo bastante enigmático, utilizo um artifício-valise: a parodiábola, misto de paródia (ode, que perverte o sentido de outra ode) e parábola (narração alegórica que representa uma coisa para dar idéia de outra maior)[11]. E para fazer esse artifício, nada melhor do que dormir e sonhar em pleno seminário de psicanálise e literatura.











PENISOLATE E UÍSQUE ORVALHADO







Em um seminário de literatura e psicanálise sobre epifanias e palavras-valise, encontrei uma amiga. Há poucos dias, ela me disse não entender as epifanias de Joyce. Parece ser queixa comum entre meus colegas. Não se trata do conceito de epifania, mas de algo que não pode ser entendido – “as epifanias são esvaziadas de sentido”.







Naquele dia, eu estava angustiado por ter discutido com um colega, querendo um braço amigo para me amparar. E quando eu contasse o que ocorreu...: Não foi nada, isso acontece com todo mundo, logo você esquece... Venha, vamos conversar e tomar um cafezinho, que a preocupação passa. Com essa certeza, aproximei-me dela:







– Minha amiga, eu queria que você me ouvisse, estou precisando de um puxão de orelhas.



Percebendo toda minha insegurança e angústia, ela dirigiu os olhos para mim – estranhos... brilhantes – choravam! E sorrindo, me disse:







– Você já as puxou.







Fiquei atônito – ela não sabia o que era epifania e falou como mestre, não fazendo pergunta, mas dando resposta – você já as puxou – e o conteúdo não precisou ser revelado. Foi tão abrupta e inesperada esta resposta, que algo me transformou: minha insegurança desapareceu de imediato, fiquei quase em estado eufórico. Mesmo sofrendo, me passou confiança. Parecia ter dito: acredito em você – acredite também. Assim, me deu forças, não só para acabar com aquele mal estar temporário, mas para terminar este trabalho, que eu estava com grande dificuldade em concluir. O que o meu trabalho tem a ver com o puxão de orelhas? – ainda hoje elas me doem...



E por quem seus olhos choravam?







Repentinamente várias idéias me iluminaram, por momentos percebi claramente qual a linha a seguir no meu trabalho. Recostei a cabeça na cadeira e relaxado, comecei a divagar... O mistério do mundo:[12]









“O mistério de tudo





Aproxima-se tanto do meu ser,



Chega aos olhos meus

d’alma tão de perto,



Que me dissolvo em trevas



e universo...



Em trevas me apavoro



escuramente.”







Joyce também se dissolve em luz e trevas, quebrando as ilusões com sua natural irreverência – ele estudou as epifanias de São Tomás acompanhado de duas “belezas venéreas – Nelly Fresca e Rosália, a puta do Cais de Carvão” – momento místico e trivial, simbolizando a própria transmutação que as epifanias sofrem ao passarem das mãos de um santo homem para as de um homem pecador... esquisito... acho que estou dormindo... as minhas idéias misturam-se às palavras distantes do conferencista, pronunciadas sonoramente:







– Porque meus colegas ficam petrificados diante das epifanias e não se dão conta de que a análise é um enigma encantado – onde há revelação e transformação. Quando o verbo inesperadamente surge, algo é revelado em momento único, não produto da identificação, mas da singularidade, da verdade de cada um. Por natureza, uma análise já é epifânica: ela representa o próprio desvelamento do ser, através de um texto não dito. E psicanálise é a maior palavra-valise que existe, porque carrega com ela todas as palavras não ditas...







Estranho... as epifanias, são esvaziadas de sentido? Quando li “Ulisses”, não alcancei as epifanias de Joyce. Seria por efeito da síndrome do eco, quando Lacan ocupando posição efetiva no ideal do ego de muitos, questiona: “Joyce é louco? Eu não sou, porque me inspiro nele. E Joyce, se inspira em quem?”







Influenciadas pelo ditado “quem pergunta tem a resposta”, as pessoas confundem-se, criando um outro: “na própria pergunta está a resposta” e deduzem: se Lacan diz que não é louco – sendo psicanalista, jamais poderia ser?! –, apenas se







inspira em Joyce, enquanto este – quem sabe? – ou se inspira na filha, que é louca, ou a inspiração viria dele mesmo, e a loucura também... Será que houve uma denegação e nesta Lacan se identifica com Joyce, parecendo dizer: eu me inspiro nele, mas não sou igual a ele... Quando diz isso, parece afirmar o contrário: eu também sou louco... – de que loucura ele fala?! – porque ao me inspirar em Joyce, também sou influenciado por ele, passo a falar o mesmo idioma dele... E as pessoas em quem na verdade Joyce se inspira, eu também me inspiro: sintomadaquin. Na verdade é São Tomás de Aquino, o santo homem, que salva da loucura os dois irreverentes religiosos Joyce/Lacan... Eu mesmo não acho que eles tenham distúrbio de linguagem... Talvez um deles seja até daltônico..., não distinguindo determinadas cores, jamais confundindo palavras... Foi São Tomás que trouxe nas tábuas uma ética: amar a Deus sobre todas as coisas... honrar pai e mãe... o sinthome de Lacan... as epifanias de Joyce... e não pecar contra a castidade! E ninguém pode negar – eles absorveram esta ética por meio de seus idiomas (éticos e epifânicos): epifaunético de Lacan e et(il)icoepifânico de Joyce...







... foi dessa identificação, desse ato falho, desse quarto nó trivial não múltiplo de três, que nasceu a maior epifania já criada por Lacan: o retorno do nome do pai sãotomasdeaquino; do mesmo pai, Lacan criou também um mesmo filho Joyce/Lacan. Mas na identificação, não há mourre. E a análise ou interpretação torna-se impossível, ou interminável...







... Joyce jamais poderia ser interpretado por Lacan por este carregar uma profunda admiração e rivalidade em relação ao escritor Joyce – levando-o a uma identificação. Portanto, o personagem que foi interpretado por amor ou por amoródio não foi Joyce, mas um personagem divanesco criado por Lacan – mistura de genes ou de gênios: Joyce/Lacan – sem levar em consideração o grande desejo que ele tinha em comprovar a tese sobre o nó borromeano. A sua interpretação portanto está sujeita a fatores que jamais poderiam deixá-lo numa posição de certa neutralidade... O interessante é que essa figura “divanesca” criada por Lacan, carregada de palavras-valise, de duas identidades, enriquece o estudo do sinthome e inverte a direção tradicional da articulação da psicanálise com a literatura e com a religião...







... a psicanálise sempre busca na literatura e na religião, a sua matéria prima: foi com Édipo e não com Sófocles que Freud exemplificou seu grande feito – a invenção do complexo de Édipo – sobre o qual repousa a doutrina psicanalítica...







... Lacan e outros seguidores de Freud parecem-me ter seguido por este caminho: primeiro gozava-se na literatura e na religião para depois gozar da literatura ou da religião na psicanálise. Podendo-se assim dizer que a psicanálise é uma “ciência gozada” – estranha. Não é por acaso que trata do “real” e se interessa por obras como as de James Joyce e de Clarice Lispector – “obras estranhas” Mas, quando Lacan cria um personagem “Joyce o Sint’home”, ele faz da psicanálise literatura e, ao canonizar Joyce, (e ele também por identificação) – parece fazer da psicanálise religião, invertendo assim a usual articulação da psicanálise com a “arte” e com a “crença”...







... por que eu não consegui perceber as epifanias em “Ulysses”? ... Mas em “Finnegan’s Wake”, já livre dos ecos, fiquei abismado com as epifanias de Joyce. Logo na primeira página, “penisolate” – palavra-valise que parece carregar de sentimentos a Irlanda. Depois de ouvir os significantes – sol, pênis, penny, pena isolada de um escritor, Isolda, e muitos outros..., fechei os olhos e os condensei em um poemeto:







Irlanda! Irlanda!



Península isoldada



Fálica e ensolarada



Por Joyce e Nora sonhada...







... não me satisfaço com um, dois ou mais significantes, apreendo todos. As palavras-valise são enigmas encantados que me dão o dom da revelação e da criação. No primeiro momento, eu sonhei a Irlanda para depois misturar o seu mar às águas do Capibaribe – meu rio, hoje, carrega o mar irlandês: olho da janela e vejo o Capibaribe, uma faixa estreita de água cercada por terra a se perder de vista... Capibaribe, Capiberibe, cheio de luas... as bebedeiras nos bares do cais do porto – pedaços de carne e queijo regados a uísque – pedaços de palavras, sussurros, balbucios ...







... a vitrola tocava Capiba:







“Eu daqui não saio



eu não vou embora



tanta mulher bonita



e minha mãe sem nora!”...







... senhora – sem... nora – nome que vem por lei de uma língua-mãe – elo de ligação entre as mães irlandesas e as mães de língua portuguesa. O idioma de Nora era a língua fundamental que Joyce e Lacan falavam – de um amor impossível: senhora – tanta mulher bonita – e minha mãe señora...







... e embriagado por um uísque epifânico, cujo malte de cevada foi fabricado sob um arco-íris orvalhado, sem dar sentido a nada, muito menos a Joyce, caio de uma escada tão alta que mais parece um penhasco. Na queda, ouço um trovão: sem ruídos..., cem palavras..., a canção de Finnegan’s Wake:







“Uma manhã, Tim cheio de uísque



Caiu da escada e quebrou a cabeça



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Para seu cadáver velar

..........................................................



Seu corpo deitaram na cama



Um galão de uísque aos pés



Um barril de cerveja à cabeça”.



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E na queda, rio, rio, rio...



Ela – rio – nuinha para mim



E ereto em baixo de águas e de anáguas



Eu me afogo no rio, rio, rio...



Refletindo o fálico brilho de um sol







Em suas águas, agora leitosas



– Liebfraumilch –



Bebo numa taça de vinho tinto



Pedaços de palavras, balbucios, sussurros ...



Pedaços de carne e beijos regados a uísque.







– Acorda, santo homem! Está na hora da sua análise com Lacan – você é louco? Me assustou, chegou foi bêbado!







– Nora, está zangada, pensou que eu tinha morrido? O meu amor por você é uma epifania, parece não ter sentido, mas transborda de sentimentos, algo impossível de dizer... do vazio surge você – minha mulher –. Me dá um beijo!







– Não vem, não! Parece que ainda sonha...







– Você, o inverso da minha luva, e não me ama mais?







– E o amor existe? Quem é que fica tão perto e tão distante de mim, como se fosse um deus, indiferente, a aparar as unhas?







–Ah! Meu amor, todo homem tem uma Nora. Se não tem, as mães o têm.







– Acorda, acorda, você está roncando, em pleno seminário! Venha tomar um café...







– Ora! É a segunda vez que me acordam... Não, obrigado senão eu não durmo...







– E o que você estava fazendo durante todo o seminário?

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