A Singularidade da Psicose

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Ana Lúcia Bastos Falcão


Lacan comenta no Seminário 1 “O Real não espera nada da fala”. Refletimos, o que essa frase quer dizer? De que se trata quando pensamos nas dificuldades que encontramos em nossa clínica com psicóticos onde não é pela via da articulação significante que há progresso?



Trago um escrito de Manoel de Barros que parece falar de toda a desarticulação promovida pela exclusão no Simbólico do que poderia dar surgimento ao sujeito.



PALAVRAS


Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que uma palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silencio. Os moradores do lugar se queixam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.



Manoel de Barros/2000


Freud situou toda a origem da Psicanálise a partir da experiência com as histéricas, anteriormente, percebidas como bruxas e feiticeiras. Foi a fala delas que orientou a experiência germinal do fundador da psicanálise. Anna O definiu o tratamento como talking cure, limpeza de chaminé, cura pela fala e a Sra Emmy Von N apontou os caminhos a serem seguidos pelo método psicanalítico quando dizia: - Fique quieto!- Não diga nada! – Não me toque! - enfim, não interrompa o curso de meus pensamentos. Elas sabiam sem saber e traziam seus sintomas para serem decifrados por quem as escutava. O sintoma é uma mensagem e Freud, desde aquela época, era visto por elas como aquele que podia proporcionar alívio.



Lacan, posteriormente, falando da neurose, se reporta e nomeia o analista como Sujeito suposto Saber Ler(o inconsciente). No decorrer da análise o discurso se interrompe, a partir da resistência própria do recalque do analisante, e é por esse caminho, engrenado na relação transferencial ao analista, que o saber não sabido, particular, de cada analisante advém. O analisante resiste, ama o analista, aquele que está no lugar de Sujeito suposto Saber ler o inconsciente, tenta escapar do confronto com seu desejo. O analista, entretanto, sabe que seu lugar é de amado, não de amante e não atende a demanda de amor.



Em relação às psicoses, Freud apresentou muitos paradoxos. Baseou a psicanálise, em alguns textos, em preceitos e princípios mais associados à neurose do que a psicose, abordando as duas estruturas com a presença dos mesmos mecanismos.


Em seus primeiros artigos, Freud incluía a psicose no rótulo psiconeurose de defesa. Encontrava na psicose recalque, projeção e fantasia interessando-se mais pela paranóia do que pelas outras psicoses. Em 1896, no texto Novos Comentários sobre as Neuropsicoses de Defesa, apresenta conclusões extraídas de uma paciente “cedida” a ele por Breuer. Nessa ocasião, utiliza o método de Breuer como se estivesse atendendo uma histérica. Inicialmente denominou o caso de Paranóia Crônica, mas, em 1924, reavaliou suas conclusões afirmando tratar-se de dementia paranoide. Para ele, nessa época, a psicose seria efeito de um “recalque especial de lembranças aflitivas, traumas da infância, produzidos alucinatoriamente”(Freud,S 1896). Freud acreditava conseguir eliminar “as alucinações”. O tratamento buscava fazer os pensamentos inconscientes e lembranças recalcadas tornarem-se conscientes quando a resistência fosse ultrapassada. No caso clínico da Sra P., Freud faz a ressalva: os pensamentos inconscientes eram ouvidos pela paciente interiormente, “alucinando-a e de forma especial”. As vozes eram, auto-acusações relativas ao trauma da infância(Freud,S 1896), seus próprios “pensamentos ditos em voz alta”(Freud,S 1896). As alucinações eram interpretadas, apenas, como retorno do recalcado nessa época. Em 1911 no artigo sobre Schreber Freud sublinha: o delírio que não é uma “mera projeção para o exterior”, retificando sua posição anterior, passa a afirmar que “aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (Freud,S 1912). Este é um marco na posição de Freud diante das psicoses que diferencia o lugar do analista na clínica frente aos fenômenos que encontra.



Lacan em sua releitura aborda o sujeito a partir da estrutura e não mais dos fenômenos. Reafirma as alucinações e delírios como o Real que vem de fora e não de “dentro” do sujeito. O aparecimento dos fenômenos, como pura exterioridade, faz com que o sujeito seja tomado por eles. Não se trata de mera projeção articulável no Simbólico. Na releitura da frase de Freud Lacan põe em relevo: o que não vem a luz do Simbólico reaparece no Real (não se trata aí de realidade). É esse conteúdo excluído do Simbólico, efeito da foraclusão do significante Nome do Pai, que impede que o psicótico siga outros caminhos a partir da fala.



No texto Sobre o Narcisismo Freud apresenta uma grande diferença entre neurose e psicose ao se reportar a teoria da libido e ao narcisismo primário. Faz referência à demência precoce e a esquizofrenia, mas inclui as duas, no termo parafrenia. Comenta sobre os efeitos das psicoses: megalomania e o desvio do interesse do mundo externo, enfim, libido investida no próprio eu. (Freud,S 1914). O que Freud acentua é a diferença encontrada na neurose, pois, apesar do neurótico ter desistido de sua relação com a realidade, ele não suprime ou abole a relação erótica com as pessoas e coisas, mas continua retendo essas relações na fantasia. Além disso, o neurótico renuncia as ações motoras para obter seu fim em relação a esses objetos.



Na parafrenia é diferente: a retirada da libido das pessoas e das coisas, do mundo exterior, se dá sem nenhum tipo de substituição na fantasia. Lacan dirá sobre a psicose: ausência de possibilidade de imaginarização, imaginário desabado, inconsistente, inexistente, um imaginário que não funciona. Sem poder se atar ou recorrer ao registro do Imaginário, o psicótico mergulhado no Real responde do lugar onde se encontra, a partir da ausência do significante primordial e do oco do Imaginário.


Freud expõe, ainda nesse texto, que quando a fantasia aparece no psicótico, ela é secundária, e que talvez isso já faça parte de uma tentativa de cura que reconduz a um investimento no objeto. Retomando, mais uma vez Lacan, fazemos uma comparação: o tratamento do neurótico seria uma tentativa de reduzir o sentido do imaginário, ao passo que, em relação ao psicótico, se trataria de buscar dar suporte a construção, ou invenção, de um objeto em torno do qual possa surgir algum tipo de “fantasia”, ou “fantasma”, mesmo que precário.



Será que a fantasia do neurótico corresponderia no psicótico ao delírio no registro do Real? Embora o delírio seja uma resposta a uma impossibilidade do psicótico responder a partir do simbólico e do imaginário, não deixa de ser uma tentativa dele, de retomar, de alguma forma, uma “sombra” de objeto. O delírio no psicótico seria esta “fantasia no Real”? Uma saída falida, mas, ainda com esboços de “objetos”?



Refletindo ainda ambivalências nos textos de Freud seguimos com alguns comentários dele. Freud, às vezes, foi pessimista em relação ao tratamento da psicose. No Esboço de Psicanálise chega a dizer: “As neuroses e psicoses são os estados nos quais se manifestam os transtornos funcionais do aparelho. Escolhemos as neuroses como objeto de nosso estudo porque só elas parecem acessíveis aos métodos de que dispomos”. As psicoses recebem o atributo: sem acesso ao método ou a técnica da psicanálise... Isto nos apresenta um enigma, um obstáculo a se pensar, como superá-lo.



O que é o inacessível ao método psicanalítico nas psicoses? O que é o impossível e o que podemos fazer para tornar o impossível, talvez, menos inacessível ao método da psicanálise? O impossível de que se trata não é o “impossível dizer tudo”, “impossível chegar a causa primeira”, o “eu não consigo falar disso”. Não se trata do real do Simbólico, do que é inacessível porque faz parte da própria divisão do sujeito, expresso na frase usual “o umbigo do sonho”. Mas trata-se do impossível Realmente, com R maiúsculo, de algo que remete a foraclusão do significante Nome do Pai, a ausência de limite ao Desejo Materno, ou ao Gozo absoluto do grande Outro...


O psicótico está submerso no registro do Real, com um “inconsciente a céu aberto”, ou “a flor da terra”(Lacan,J 1955/6). Essa é a situação que encontramos ao nos depararmos com um analisante de estrutura psicótica, que nos coloca em questão, como se perguntasse, o que você pode me ajudar a fazer d’Isso. O psicótico, geralmente, nos vem empurrado, a força, com uma vida cheia de proibições e impedimentos. Talvez ainda permaneçam confusões conceituais e pudores, que nos aprisionam e nos inibem, em sermos mais criativos na clínica com psicóticos, em nos adaptarmos a estrutura e/ou ao momento de nossos analisantes, em trabalhar com o registro do Real. Trabalhar, no tratamento, com esse Real do qual é ilusão achar que é possível cavar o Real, simbolizar o Real ou penetrar nele , é a isso que somos convidados no tratamento. O Real, que se diferencia da realidade, não é articulável, mas, dele pode surgir uma construção, uma invenção. Trata-se, mais uma vez, da nossa resistência ou da resistência da Psicanálise, às vezes, excessivamente rigorosa, domática, que termina por se enganar quando despreza as diferenças das estruturas nas intervenções, nas interpretações, abordando, de forma semelhante, a prevalência dos três registros na estrutura neurótica e na psicótica.


Em 1905, no texto Sobre a Psicoterapia, Freud é mais otimista ao nos fornecer alguns esclarecimentos: “as psicoses, os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada (tóxica eu poderia dizer) por conseguinte, são impróprios para a psicanálise, ao menos tal como tem sido praticada até o momento”(grifo meu). “Não considero nada impossível que, mediante uma modificação apropriada do método, possamos superar essa contra-indicação e assim empreender a psicoterapia das psicoses” ”(grifo meu - Freud,S 1905).



Freud propõe abertura ao método, uma adequação à estrutura do analisante psicótico que tornaria acessível a ele a psicanálise. Nesse aspecto, refletimos sobre as diferenças e sobre a posição do analista no tratamento das psicoses.



É do lugar do psicótico como sujeito suposto saber e da transferência do analista por ele que se parte no tratamento, com o analista na posição de amante e o analisante na posição de amado. A possibilidade do tratamento é que essa inversão seja sustentada pelo desejo do analista.



Tanto Platão em Lysis quanto Cícero no texto a Amizade se referem às regras que fazem um sujeito estabelecer uma relação de amizade com outro. Essas regras supõem a lealdade, fidelidade, respeito etc... nessa relação de amor Philia que se distingue do amor Eros. O amor Philia despreza os vínculos parentais e se constitui enquanto relação espontânea de semelhante a semelhante.


Talvez para o psicótico, na relação transferencial com o analista, haja mais esse amor Philia do que o amor Eros. O psicótico permanece com a libido investida no próprio eu, mas isso não o impede de manter relações, as relações é que são diferentes. No tratamento o analista tem que se dispor a acolher e fazer entrar em jogo essa espécie de amizade, vertente dirigida do psicótico para a analista, estabelecida a partir da confiança, do cumprimento de algumas regras entre os dois, que dá suporte ao imaginário falho do analisante. Lacan ressalta no amor, a dimensão da resistência, tentativa de encobrir o desejo. Mas, quando o analista não pode ser colocado na posição de semblante de objeto causa de desejo, porque não há propriamente desejo, como poderíamos pensar no amor Eros? Distintamente na amizade há uma relação mais fraterna do que de filiação. Há uma partilha de regras, uma cumplicidade que exclui um atrelamento ao desejo invasor Outro do qual o psicótico é assujeitado radicalmente. A entrada em jogo do analista enquanto amigo pode servir tanto como suporte ao imaginário falho do psicótico quanto como possibilidade de colocar uma questão, uma relativização, frente a certeza do saber analisante, do qual ele continuamente testemunha. É a isso que o analista pode fazer barra. Colocando-se como apoio, calço para que o analisante possa encontrar algum “desejo-vontade” sendo, ao mesmo tempo, uma espécie de obstáculo ao desejo do Outro.



O psicótico vive, na maioria das vezes, como um objeto depositado em um canto qualquer, sem ter com quem conversar, com quem estabelecer qualquer tipo de trocas. O próprio delírio dele é, para a família, na maioria das vezes, insuportável.



Sem se constituir como sujeito desejante, efeito da foraclusão do Nome do Pai, ele fica jogado com esse saber da ordem do Real que, para nós analistas, tem seu valor e pode ser escutado.



No Seminário das psicoses Lacan chama a atenção para a questão da resistência do analista, desta vez, nas psicoses. Afirma que o analista pode desencadear uma crise psicótica no analisante quando falha no manejo da relação analítica. Salienta que “não se torna louco quem quer”, no entanto, lembra do desastre que o analista pode causar ao autentificar o imaginário. Ao substituir o reconhecimento no plano simbólico pelo reconhecimento no plano imaginário, o analista pode desencadear um delírio. É insuportável para o psicótico, um sujeito já “invadido” pelo desejo do grande Outro, o analista se colocar no lugar do sábio, do adivinhador, do que sabe tudo, da perfeição, e isto pode desencadear uma crise.


Enfim a psicose demanda o reconhecimento de sua radical diferença na clínica, nas intervenções, no manejo da transferência, na escuta, nas “interpretações”.

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