O sermão do bom ladrão


O PENSAMENTO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

NA ATUALIDADE



Lucia Carine Rocha Corlinos (UERJ)
Ruy Magalhães de Araújo (UERJ)







O SERMÃO DO BOM LADRÃO



Um dos sermões que mais se identifica com a atualidade brasileira, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa em 1655, diante de D. João IV e sua corte. Lá estavam também os maiores representantes do reino, que possuíam cargos elevados, tais como: juízes, ministros e conselheiros.



Vieira utilizou-se do púlpito como mensageiro das absorções públicas, à maneira de uma imprensa ou de um palanque político. Apesar de estar na Igreja da Misericórdia, disse ser a Capela Real e não aquela Igreja o local que mais combinava com o seu discurso, porque iria expor assuntos pertinentes à sua Majestade e não à piedade.



Vejamos alguns trechos abaixo:



Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.



Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.



Esta pequena introdução serviu para que Vieira manejasse os seus dardos inflamados contra aquele auditório composto por pessoas da nobreza. E continuou enérgico:



A salvação não pode entrar sem se perdoar o pecado, e o pecado não se perdoa sem se restituir o roubado: Non dimittitur peccatum nisi restituatur ablatum.



Suposta esta primeira verdade, certa e infalível; a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição do alheio sob pena de salvação, não só obriga aos súditos e particulares, sendo também aos cetros e as coroas. Cuidam ou devem cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo; e é engano. A lei da restituição é lei natural e lei divina. Enquanto lei natural obriga aos reis, porque a natureza fez iguais a todos; enquanto lei divina também os obriga; porque Deus, que os fez maiores que os outros, é maior que eles.



Baseado no pensamento do filósofo Patrístico Santo Tomás de Aquino, de que os príncipes são obrigados a devolver o que roubam do povo, sem que seja para a conservação e benefício de todos, lembra Vieira terem sido castigados com o cativeiro dos Assírios e dos babilônicos os reinos de Israel e Judá, entretanto os seus príncipes, em vez de cuidarem do povo na função de pastores, roubam o mesmo como mercenários: Principes ejus in médio illius, quasi lupi rapientes praedam. (Ezech. XXII, 27)



Diante do pensamento de Santo Agostinho, é nítida a diferença entre os reinos, onde se evidenciam opressões e injustiças, e os abismos dos ladrões: naqueles os roubos e as extorsões eram muito grandes; nestes os covis de lobos eram representados por reinos menores, e confirma essa proposição narrando de uma passagem histórica com Alexandre Magno:



Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei; todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.



Quando li isto em Sêneca não me admirei tanto de que um estóico se atrevesse uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero. O que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina.



Seguindo ainda nessas proposições, lança acusações contra os poderosos:



O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias ou a administração das cidades, os quais já com mancha, já com forças roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.



Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens viu que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: lá vão os ladrões grande a enforcar os pequenos... Quantas vezes se viu em Roma a enforcar o ladrão por ter roubado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo, um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província?... De Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinário: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo para roubar ele só! Declarando assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse, e digo levam consigo os reis ao inferno.



Vieira novamente vai fazer uso, do pensamento do filósofo Patrístico Santo Tomás de Aquino:



(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.

 CONTINUAÇÃO

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