Dia de dizer NÃO








Esse dia vai ser hoje, resolvi quando acordei: dia de dizer Não! E pensei de repente em Santo Agostinho, o vera artificiosa apis Dei - abelha de Deus. Admirada e amada abelha de caráter tão forte que conhecendo o sim e o não na sua natureza mais profunda cedeu para em seguida resistir, ah! como ele resistiu até se instalar na cidade sonhada. Não! ele disse ao invasor daquele tempo e que devia ser parecido com o invasor atual, esse invasor-cobrador a ocupar um espaço que não lhe pertence.






Falei na Cidade de Deus. E estamos nesta cidade aqui embaixo onde tem invasor de todo tipo, desde os extraterrestres (em geral, mais discretos) até aqueles mais ambíguos: o invasor da vontade. Esse vem mascarado. Aproveitando-se, é claro, do mais comum dos sentimentos, o da culpa. No imenso quadro do mea culpa, a postura fácil é a da humildade que quer dizer fragilidade. Isso comove o invasor? Não comove não, ao contrário, ele se sente estimulado a insistir até dobrar a vontade enferma que acaba por ceder fortalecida na crença de que mais adiante pode se libertar. Libertou-se? Não porque o sim vai se multiplicando como os elos de uma corrente na qual ele se enrola, passivo. E acreditando lutar porque não perde a esperança. Mas a esperança é cega e na desatinada cegueira acaba por se transformar na esperança da desesperança.






O próximo que Jesus pediu para amar, eu sei. Mas Ele está vendo como ficou o próximo neste século. E não estou pensando no próximo real (o povo) mas nesse próximo oficial, o político-invasor que nem está se importando realmente quando ouve a recusa: faz uma cara aborrecida mas logo vai tomar chope ou cocaína e esquece. Contudo, mostra-se exigente. E costuma fazer perguntas no tom de quem não aprecia respostas pessimistas, o cobrador é o oposto do negativista. Tudo bem?, ele pergunta e o invadido deve responder, Tudo bem! com aquele ar atlético de quem já deu a volta por cima quando na realidade está caído de borco no chão. É o sim do comodismo. Da servidão.






A cega esperança. Com os cegos encarneirados no servilismo que gera a insegurança. O medo. Medo até de sentir medo e daí a fragilizada vontade sonhando com a evasão. Com a fuga. Mas fugir para onde se a Miséria e a Violência (as irmãs gêmeas) estão em toda parte num só galope, montadas nos pálidos cavalos do Apocalypse. Neste Ano do Dragão (Horóscopo Chinês) o homem ficou mais cruel ou ele foi sempre desse jeito mesmo?






Dia de dizer Não. Peço a Deus que aumente a minha fé, peço tão ardentemente, é a depressão? E esta dor não localizável, outra gripe? Por pudor não me jogo no chão nem arranco os cabelos que já estão ralos na cabeça dolorida, mas onde está aquele bom invasor (o extraterrestre) que vai ensinar a desatarraxar a cabeça latejante para dependurá-la com delicadeza no cabide? Dissolvo aspirinas. Uma parte de mim mesma se deita no escuro enquanto a outra parte (estou dividida) me aponta a rua. Porque já tem um cobrador no éter (o telefone) cobrando e interpelando, Por que essa voz? Engulo depressa a saliva e respondo que estou bem. Estou ótima! posso até declarar aos quatro ventos, quais são os quatro ventos? Esqueci. Sei de um único vento que apenas varia de intensidade assim como a Pizza dos Quatro Queijos, atração do restaurante: a gente encomenda e ela vem soltando fumaça, quatro queijos! Na realidade, há um único queijo que vai variando ao capricho dos molhos. A solução é fingir (mentir) que a gente acredita e de mentira em mentira ir regredindo até culminar no triunfo do otimismo só alcançado por aquele filme, lembra? O galã levou uma rajada de metralhadora no peito, a camisa ensopada de sangue (suco de tomate ou calda de chocolate?) e ainda assim consegue chegar rastejante até o policial que faz a clássica pergunta: Tudo bem? E o galã responde, Tudo bem! quando devia gritar, Que merda, eu estou morrendo! Mas nesse pedaço entram os violinos (cinema comercial norte-americano) e o galã fica sentimental porque pensa na amada. Mais violinos. Horas non numero nisi serenas! - ele pode citar com a ênfase do relógio no jardim parisiense, Conto somente as horas felizes!






Contagem em dólar! sopra o materialista eufórico. Pois é, a ênfase. "As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase", escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Ficam tristes as coisas e a espécie humana, eu acrescento. Com a licença dos ateus eu queria dizer ainda que na ênfase está a alma.






Tive a minha juventude tão impregnada pelo som colonizador que considero um milagre me ver insubmissa nesta altura, tentando desde sempre - ai de mim! - forjar uma vontade com a resistência do ferro.






Manhã de céu claro. Limpo. O motorista do táxi liga o rádio e pergunta se quero escutar esse político falando. Não, respondo. Digo que não gosto de discurso e ele sugere então uma música sertaneja, já estacionou no canal das violas. Desafinadas, descubro e me calo: se essa sua cordialidade não tiver resposta, ele vai se irritar e na irritação pode trombar com o carro da frente, um ônibus que já está invadindo o nosso espaço. Cuidado!, eu sussurro e me encolho inteira para não ser arremessada para fora. Num impacto do qual saio, no mínimo, com uma perna quebrada. Tento relaxar enquanto vou brincando (brincando?) com as idéias: imagino uma senhora de perna quebrada e entrando num pronto-socorro público em dia útil. Ou inútil, não importa, sempre há gente demais. Demais! - exclama o médico ao qual me dirijo com delicadeza, na insegurança a voz fica delicadíssima. A senhora teve apenas uma fratura, ele diz. E olha só como está isso!, explode e corre em seguida para receber um capacete de motoqueiro com miolos dentro. O policial com o capacete está gaguejando, pois o jovem teve a cabeça prensada contra o poste e na colisão ficaram esses miolos, ele esclarece estendendo o capacete. Recolhi o que pude, esclareceu e apontou para o corredor: O corpo é aquele que está ali... Que estava, porque a padiola já vai sendo rapidamente removida. O policial e o médico, ambos precisam correr atrás dessa padiola. Em vão, porque foram interceptados por outro médico que chega esbaforido e perguntando pelo corpo de outra vítima, outra?! Esse segundo médico aponta para a padiola onde está apenas um braço amputado e meio enrolado numa folha de jornal com respingos de sangue. Pasmo total dos dois médicos e do policial gaguejante. Mas logo aparece um senhor bem barbeado, metido numa elegante malha esportiva. Apresenta-se como testemunha: Este não foi um acidente mas um assalto, ele diz fechando o zíper do blusão azul. Eu vinha fazendo o meu cooper quando vi num buraco do asfalto um dedo apontando no meio da lama, tinha chovido, doutor. E o bueiro entupiu, o senhor sabe, estão sempre entupidos. E o braço decepado pelo elemento foi cair justo nesse buraco, o susto que levei! O segundo médico (o primeiro já tinha desaparecido com o policial) inclinou-se para ver melhor o braço com placas de lama e sangue. E ainda com uns restos do tecido da camiseta cavadona, o calor. A testemunha abre o zíper do blusão e prossegue: A vítima vinha guiando o seu Gol último tipo quando fechou o sinal e lá veio o elemento com o revólver que falhou. A vítima então abriu o vidro da janela e abriu os braços, a recomendação é essa, a vítima não deve jamais reagir, ao contrário, deve demonstrar afeto. Infelizmente o elemento não entendeu e puxou a peixeira, tinha falhado o revólver, já dei esse detalhe. E todo mundo que ia passando por perto e fazendo que não estava nem aí, todo mundo vendo e disfarçando enquanto o elemento continuou completando o seu serviço! arrematou a testemunha apontando para a padiola. Puxou o maço de cigarro do bolso do blusão e interrompeu o gesto quando leu o aviso, É proibido fumar. O médico inclinou-se atento até à padiola, Mas o corpo? Onde está esse corpo? A testemunha empertigou-se: Também não sei, doutor! Suponho que o corpo veio na frente, está por aí, disse e apontou vagamente para o corredor atulhado de padiolas e camas improvisadas. Só encontrei esse braço que esqueceram no local, conforme já disse. O resto mesmo eu não sei onde foi parar, isso daí eu não sei. O médico tirou uma pinça do bolso do avental e futucou o corte sob a crosta de sangue: Um trabalho perfeito, disse.






Recolho as pernas para bem junto do banco e olho aflita para o motorista que está atendendo a um chamado no seu celular, dirige apenas com a mão esquerda. Enfim, o ônibus ameaçador já desapareceu no tumulto. Consigo moderar a respiração. A charanga das violas segue livre no rádio e agora o motorista guia com ambas as mãos, depositou o celular ao lado. Abro uma nesga no vidro da janela e onde o vendedor já introduziu uma caixinha, Morangos, dona? Digo Não e vou repetindo o Não ao vendedor que oferece panos de limpeza e ao outro que oferece chicletes, vassouras... A miséria trabalhando, penso e digo um Não mais brando ao moço que oferece uma cestinha de violetas. Aproxima-se um pequeno cacho de mendigos. Fecho depressa o vidro e no espelhinho vejo a cara congestionada do motorista que me lança um olhar agressivo, Está quente, não?






Na avenida ensolarada, a miséria (aquela galopante) me pareceu mais calma. Ainda assim, presente. Abri o vidro da janela esquerda quando o sinal fechou lá no cruzamento. Abre logo! fiquei desejando. Mas esse era um farol distraído, tão distraído que deu tempo para o menino vendedor de bilhetes de loteria vir vindo capengando: equilibrava-se nas muletas debaixo dos braços ossudos e ainda assim avançava rapidamente, esgueirando-se ágil por entre as filas de carros. Mesmo lá longe devia ter visto a janela aberta e agora chegava triunfante. Pronto, conseguiu, pensei recuando enquanto a mão magra entrava pela abertura, não vendia bilhetes mas papel de cartas.






- Cartas perfumadas! anunciou com voz estridente ao abrir o leque colorido de envelopes. Mande uma carta perfumada, olha só, esta tem perfume de rosa! Esta daqui é de jasmim, coisa linda!






Escorreguei para o canto oposto do carro e ele insistindo a sacudir o arco-íris de papel. Senti o perfume adocicado e voltei o olhar ansioso para o farol vermelho, tão vermelho! mas não vai abrir?! E o menino magrela e dentuço falando sem parar, Carta azul é para amigo mesmo, mas esta daqui cor-de-rosa, está vendo? esta é carta de amor! Esta daqui branca é de amor que acabou mas esta roxa é a carta da saudade, a saudade é roxa, leva tudo e faço um preço especial!






Fixei o olhar nas suas duas muletas, uma de cada lado a sustentar o tronco ossudo e saltado sob a camiseta de propaganda política. Então me lembrei de minha mãe lá no seu jardim, as mãos sujas de terra tentando segurar com duas estacas a planta emurchecida, vergada para o chão.






- Não tenho a quem escrever.






O menino riu a sacudir o maçarote.






- Mas nenhum namorado, uai!






O motorista achou graça e sacudiu os ombros num risinho de cumplicidade, O perfume é bom! aprovou em voz baixa. Voltei-me para o sinal, mas não vai abrir nunca mais? E aquela intimidade que de repente se armou ali dentro, a música sertaneja no auge das violas e o menino também no auge do entusiasmo, a sacudir as cartas:






- Escuta só isso, ele pode estar longe mas vai voltar correndo se receber esta carta verde que é do perdão. Puro cravo!






- Abriu! O sinal abriu, anunciei ao motorista distraído, todo voltado como um girassol para o vendedor.






Ele retomou a direção, eu disse o Não definitivo e as filas dos carros recomeçaram a avançar furiosamente. A mão alada fugiu feito um pássaro pela fresta do vidro. Vi ainda a silhueta magrela esgueirar-se capengando entre as muletas e desaparecer atrás de um jipe.






- Fica para outra vez, eu disse fechando a janela.






- O perfume era bom, resmungou o motorista.






Ele estaria me censurando ou a censura estava apenas em mim? Fui cumprindo as tarefas da rotina: uma passagem pelo banco que achei diferente, mas onde está aquele antigo clima de amenidades, de confiança? Tantos homens armados. As caras severas - mas este banco virou um quartel? Ouço sem emoção as ofertas de valiosos planos que o gerente oferece e aos quais vou educadamente recusando, Não, não... Parto em seguida para o corredor tumultuado dos Correios e Telégrafos. A fila é bastante longa e então tenho tempo para ouvir os apelos, esta mulher com uma criança quer dinheiro para comprar os remédios, o homem desdentado pede uma passagem para voltar ao Nordeste, o moço com chapéu de vaqueiro quer que eu participe de um sorteio fantástico, posso ganhar um carro importado! Não, Não... vou repetindo e no cansaço faço agora apenas um gesto meio vago para o mendigo que me aborda na calçada e que fixa em mim um olhar interpelativo, Mas o que a senhora tem aí no peito? Uma pedra?






- Podemos ir, eu disse ao motorista que me aguardava no táxi. Ele tinha desligado o rádio e examinava um folheto. A cara fechada.






- Onde agora?






Fiquei muda ao sentir que meu semblante tinha descaído como os semblantes bíblicos nas horas das danações. Baixei a cabeça e pensei ainda em Santo Agostinho, "a abelha de Deus fabricando o mel que destila a misericórdia e a verdade". Afinal, o dia de dizer Não estava mesmo cortado pelo meio porque na outra face da medalha estava o Sim. A vontade podia servir tanto de um lado como do outro, o importante era escolher o lado verdadeiro e para isso seguir a inspiração da razão. Ou do coração? Ora, liberdade nessa inspiração, toda a liberdade para não me sentir como estava me sentindo agora, uma esponja de fel. A ênfase da inspiração! decidi e levantei a cabeça no susto da revelação: o menino das muletas! Era nele que pensava (e não pensava) o tempo todo.






- Por favor, vamos voltar para o mesmo caminho, pedi ao motorista. Quero comprar as cartas daquele menino, vou comprar todas! anunciei e ouvi minha voz com alegria.






Ele voltou a ligar o rádio. Deu a partida:






- O perfume era bom.






Lá estava o cruzamento da avenida e com o mesmo farol vermelho acendendo glorioso. Abri rapidamente o vidro da janela, Que sorte! E procurei ansiosamente, Mas não era por aqui que ele estava? O motorista saiu do carro para ajudar na busca, olhou para um lado, para o outro, gesticulou. Fez perguntas, E aquele moleque das muletas?...






Abri a porta e perguntei ao jornaleiro, Onde está o vendedor das cartas, você conhece? Então, aquele... ah! onde a mão ossuda sacudindo o jardim do arco-íris, onde?! Vi o vendedor de figos e vi a menina dos caramelos. Fui olhar da outra janela e dei com o jovem dos potes de flores.






- Um menino de muletas vendendo cartas! perguntei e as pessoas tentando vagamente ajudar, Cartas?...






O motorista voltou para a direção, lá adiante o farol já estava verde.






- Mas onde esse moleque foi parar?






Vi ainda o jornaleiro e o camelô dos relógios, vi a mocinha distribuindo anúncios de imóveis, e o menino das cartas perfumadas, esse eu não vi mais.














Texto extraído do livro "Invenção e Memória", Editora Rocco, 2000.







































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