A sombra_o lado escuro de cada um de nós


A Persona

O termo latino persona refere-se à máscara do actor da Antiguidade, que era usada nas peças rituais solenes. Jung usa o termo para caracterizar as expressões do impulso arquetípico visando uma adaptação à realidade exterior e à colectividade. As nossas personae representam os papéis que desempenhamos no palco do mundo; são as máscaras que carregamos durante todo esse jogo existencial exterior. A persona, como uma imagem representativa do arquétipo da adaptação, aparece em sonhos nas imagens de roupas, uniformes ou máscaras.
Na infância, os nossos papéis são determinados pelas expectativas do pai e da mãe. A criança tende a comportar-se de modo a receber a aprovação dos mais velhos, e esse é o primeiro padrão de formação do ego. Esse primeiro padrão da persona é constituído por julgamentos de valor e códigos de comportamento culturais e colectivos, que são expressos e transmitidos através dos pais; nessa altura, as exigências dos pais e as exigências do mundo externo parecem, em geral, idênticas.
Quando se verifica um desenvolvimento psicológico adequado, é necessário que ocorra uma diferenciação entre o ego e a persona. Isto significa que temos de nos tornar conscientes de nós mesmos enquanto indivíduos separados das exigências externas feitas em relação a nós; temos de desenvolver um sentido de responsabilidade e uma capacidade de julgamento não necessariamente idênticos aos padrões e expectativas externas e colectivas, embora, é claro, esses padrões devam receber a devida atenção.


Temos de descobrir que usamos as nossas roupagens representativas para protecção e aparência, mas que também podemos mudar de roupa e vestir algo de mais confortável quando é apropriado, e que podemos ficar nus noutros momentos. Se as nossas vestes aderirem a nós ou parecerem substituir a nossa pele, é bem provável que nos tornemos doentes.
Temos de aprender a adaptar nos às exigências culturais e colectivas em conformidade com o nosso papel na sociedade – com a nossa ocupação ou profissão e posição social – e, não obstante, sermos nós mesmos. Precisamos de desenvolver tanto uma máscara de persona como um ego adequado. Se essa diferenciação fracassar, forma-se um pseudo-ego: o padrão de personalidade passa a basear-se numa imitação estereotipada ou numa actuação meramente definida pelo papel social que a pessoa desempenha na vida.
O pseudo-ego é um precipitado estereotipado dos padrões colectivos; uma pessoa “é” o professor universitário ou o juiz ou a dama de sociedade, em vez de um indivíduo que atribui ao papel o seu devido valor nos momentos necessários. Tal pseudo-ego é não apenas rígido, mas também extremamente frágil e quebradiço; a necessária energia psíquica de apoio proveniente do inconsciente não está acessível, mas sim em oposição ao consciente, já que tal ego está completamente separado das intenções do Si Mesmo (o núcleo mais íntimo e mais genuíno da psique humana: a Consciência.)
O pseudo-ego está sujeito a pressões constantes que vêm de dentro, e não tem meios para ajustar o seu equilíbrio precário; frequentemente, ele abeira-se do limite da psicose. Os elementos ameaçadores da psique objectiva opositora que lhe é contrária serão provavelmente vivenciados em projecções sobre o mundo exterior até ao ponto em que surgem as ilusões paranóicas, e o pseudo-ego lida com elas, refugiando-se ainda mais numa identificação protectora com o papel que representa; eis novamente o círculo vicioso.

Um exemplo extremo da dissociação psíquica que acompanha o pseudo-ego identificado com a persona é fornecido por Bennet na sua descrição de uma rapariga que era perseguida por um duplo. Quando era criança, ela sentia que deveria ser perfeita para compensar a ausência da irmã morta e, quando atingiu a adolescência, entrou num estado depressivo marcado por repetidas tentativas de suicídio para fugir de “Kathleen”, o seu pseudo-ego.
Ela via se como um bebé frágil e pouco desenvolvido, vivendo ainda o primeiro momento da existência, incapaz de imaginar o amor e o ódio como originários da mesma fonte. Era inteiramente egoísta e carecida de amor. Kathleen, por outro lado, era uma estudante de dezanove anos, bem adaptada socialmente, que apreciava a música e a pintura; era uma boa professora, muito interessada em literatura e com conhecimentos de francês e alemão – uma criatura falsa e vazia.


A identificação com a persona, origem da sua incapacidade de desenvolver um ego genuíno (o bebé frágil e pouco desenvolvido), é claramente descrita num sonho da jovem extraído da

descrição de Bennet: Eu estava de pé num grande hall.

Fazia muito frio e eu estava… preocupada, temendo ter ido parar ao lugar errado… Senti-me assustada e virei- me para fugir, mas não conseguia escapar. Diante de mim havia um grande espelho no qual podia ver me fantasiada. Estava a usar um pijama de seda preta… Queria arrancar o pijama, não de mim, mas do meu reflexo no espelho… Rasguei um pijama a seguir ao outro, e parecia que as coisas não tinham fim pois, ao remover um, outro aparecia.
O sonho descreve o mundo frio e despersonalizado (o hall frio) no qual ela se sente assustada pela vaga noção de que está no “lugar errado”, como na realidade está. Não consegue fugir porque não consegue apoderar-se de si mesma; não está em contacto consigo, mas com a sua imagem reflectida. Logo, a identificação com a persona não pode ser “retirada”, não pode ser superada. Por debaixo de cada pijama há um outro pijama; a individualidade nua não pode ser alcançada na fria atmosfera de uma mera realidade reflectida.
Num tal estado, uma pessoa precisa do impacto do sentimento individual, que desenvolve um sentido da própria identidade individual. Mas a rapariga em questão proteger se á, com uma colecção impressionante de roupagens, contra a possibilidade de a sua verdadeira pele ser tocada, ou seja, contra os seus sentimentos.
Quando a individualidade é assim confundida com o papel social, quando a adaptação à realidade não é suficientemente individual mas inteiramente colectiva, o resultado pode ser um estado de inflação. A vítima sente se esplêndida e poderosa, porque é uma refinada figura de sociedade, mas não consegue ser um ser humano, ou mesmo dar os primeiros passos no sentido de tomar-se humana.
Uma confiança exagerada tão inflacionada na persona, ou a identificação com ela, resulta na rigidez e na falta de uma sensibilidade genuína. Tal pessoa é apenas o papel que representa, seja o de médico, de advogado, de administrador, de mãe, de filha, ou qualquer outro de natureza compulsiva.
O exemplo de Eichmann mostrou como essa não-personalidade identificada com o papel social é incapaz de desenvolver uma responsabilidade pessoal e moral; ela não possui princípios éticos ou sentimentos pessoais e valores próprios, mas esconde se por detrás da moralidade colectiva e dos costumes estabelecidos. Não tem conflitos de consciência porque tudo é definido de antemão de uma maneira estereotipada.
É difícil para esse tipo de pessoa, que normalmente se considera fiel aos princípios mais elevados, dar-se conta de que, de facto, ela é imoral. É muito chocante descobrir que, bem no fundo do seu ser, algo possa exigir uma decisão individual à custa de um risco individual.


Existe uma tendência humana tão universal no sentido de confundir as vestes da pessoa com a sua pele, que essa diferenciação redunda num problema ético crucial.
No extremo oposto do espectro, quando a formação do indivíduo é inadequada devido a um treino social insatisfatório ou à rejeição das formas sociais como resultado da exclusão dos sentimentos, aquele não consegue ou recusa-se a representar com sucesso o papel que lhe é destinado. Tal pessoa sofrerá de falta de segurança, de rebeldia desnecessária e de auto protecção excessiva. O desenvolvimento da personalidade sofre assim interferência em ambos os extremos; uma persona mal formada é tão limitadora quanto o seu oposto. Um relacionamento inadequado com o arquétipo da persona pode ir da fixação no seu aspecto puramente colectivo, até à incapacidade ou recusa rebelde de aceitar qualquer exigência ou adaptação colectiva.
Exemplos de sonhos que exprimem o primeiro estado são aqueles em que o indivíduo é incapaz de tirar suas roupas, ou fica preso dentro de uma armadura pesada, ou está vestido demais, ou está a usar uniformes espalhafatosos e decorados em excesso, ou tem uma pele demasiadamente dura e áspera. A condição oposta, a recusa do colectivo, poderia ser expressa nos sonhos em que a pessoa está completamente nua numa festa ou quando descobre repentinamente, ao andar na rua, que está a usar um vestido transparente, ou quando aparece numa recepção a usar trapos sujos, ou ainda quando é uma ostra sem a concha ou uma massa flácida de gelatina.
Se a persona se encontra “colada” de forma demasiado rígida, se falta à pessoa a capacidade de distinguir a pele individual da roupagem colectiva, ela encontra-se numa posição precária; é como se a pele não pudesse respirar. Doenças de pele reais podem até coincidir com essas dificuldades.
Conheci uma rapariga que apresentava uma séria erupção cutânea na face, que resistia a todas as tentativas de tratamento. No decorrer da análise (iniciada por uma razão completamente diferente), ela descobriu que tinha um sério problema de adaptação; segundo ela, ao candidatar se a um emprego, ocultava sempre o facto de ser judia, numa tentativa de salvar as aparências.
Era como se usasse continuamente uma máscara sobre o rosto. A reacção inconsciente a essa incapacidade de revelar o rosto expressava-se numa verdadeira erupção cutânea, que desapareceu quando ela se tornou capaz de expor, psicologicamente, o seu rosto.
A colectividade e a individualidade são um par de opostos polares; daí haver um relacionamento de oposição e de compensação entre a persona e a sombra. Quanto mais clara a persona, mais escura a sombra. Quanto mais a pessoa estiver identificada com o seu glorioso e maravilhoso papel social, quanto menos este for representado e reconhecido simplesmente como um papel, mais escura e negativa será, por ter sido negligenciada, a individualidade genuína da pessoa.
Por outro lado, a preocupação excessiva com a sombra, com o lado “mau” da pessoa – a preocupação excessiva com a aparência, com o quanto a pessoa é pouco atraente e desajeitada – pode acarretar uma persona bastante negativa, defensiva e infeliz. Essa persona negativa – isto é, inadaptada – encontrará expressão na inflexibilidade, na incerteza ou no comportamento primitivo e compulsivo.
Apesar de, à primeira vista, o ego se encontrar dentro e se manifestar através da persona, vimos que os dois não foram feitos para permanecer num estado de identidade. Somos actores no jogo social, mas também devemos participar de um outro jogo. Também fomos feitos para ser os nossos Si Mesmos individuais.

Edward C. Whitmont

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