Ana: uma mulher casada


Ana: uma mulher casada



Muitas mulheres realizam-se no casamento e tornam-se cientes de sua natureza feminina através das circunstâncias variadas envolvidas na vida familiar. Há muitas outras, no entanto, com quem as coisas não se dão assim.



A mulher que se identifica com o papel da persona de esposa ou mãe, ou que se torna psicologicamente dependente do seu marido, nunca chega a conhecer as plenas possibilidades dinâmicas do feminino. Sendo o aspecto da mãe-esposa tão dominante em sua vida, sua própria virgindade psicológica não pode ser realizada. Ainda que ela tenha todo o conforto material, há uma necessidade não atendida que chora dentro dela. A mulher descrita como tendo uma “corrente de lágrimas” em volta de seu coração sentia tal necessidade como um som abafado e como lágrimas em seu rosto, geralmente durante o intercurso sexual.



É fácil culpar o parceiro por esse mal-estar, mas abandonar o relacionamento não é, necessariamente, a resposta. Antes de dar esse passo drástico, a mulher deve procurar ter a sabedoria de fazer tudo o que ela puder para estabelecer boa relação com a deusa. Dar ao lado ativo – erótico e prazeiroso – a mesma expressão que ao lado estável e conservador de mãe-esposa pode ter efeito dramático sobre a qualidade de sua vida de casada.

Ana tinha pouco mais de quarenta e cinco anos, casada e mãe de dois filhos adolescentes. Levava também vida profissional que a realizava. Apesar de tudo, estava deprimida e vivia um vazio desconcertante. Retornar aos estudos e dedicar seu interesse a causas sociais oferecia-lhe apenas alívio temporário. Ela estava a ponto de desistir de seu segundo casamento quando começou a fazer análise. Buscava implacavelmente o amor de um homem, não o amor de mãe do tipo de amor que compartilhava com seus colegas profissionais.



Em sua maior parte, a história psicológica de Ana parecia saudável. Mesmo assim, várias circunstâncias haviam inibido o desenvolvimento do aspecto dinâmico de sua natureza feminina. Fora criança adotada e, quando já adulta, pensava muito em seus pais biológicos e na razão pela qual não a criaram. Apesar de seus pais adotivos lhe darem muito amor e segurança, permanecia nela a sensação profundamente arraigada de rejeição. (Esse trauma também pode ocorrer em crianças não adotadas).

Seu pai adotivo morrera no princípio de sua adolescência. Ela se lembrava dele como pessoa amorosa e afável, ativa e espirituosa. Após sua morte, ela se tornou a filha dócil e condescendente, de modo a não criar mais problemas para a mãe. No colégio, quando cursava o segundo grau, sua segunda experiência sexual dera em gravidez, e ela, em segredo, teve aborto, completamente sozinha. Sua vergonha e culpa ficaram enterradas sob a compulsão de não fazer nada a não ser estudar. Ela não teve mais namorados até conhecer aquele com quem viria a se casar, quase um ano depois do aborto.

Aos quarenta e três anos Ana teve que se submeter a uma mastectomia, devido a câncer, a mesma doença que levara sua mãe adotiva à morte um ano antes. Alguns anos mais tarde, ela também teve histerectomia, por motivos médicos não relacionados com a cirurgia no seio. Seus órgãos femininos doentes simbolicamente apontavam o mal-estar que permeava sua vida psicológica.




No primeiro encontro com Ana, vi uma mulher charmosa, com sorriso estampado no rosto, aparentemente muito capaz. Entretanto, logo ficou evidente que se tratava simplesmente de persona bem desenvolvida. Ela guardava seus sentimentos mais profundos tão bem que nem ela mesma conseguia encontra-los. Seus traumas iniciais continuavam como feridas abertas, embora estivessem cercados por muros. A sensação de abandono decorrente de sua adoção, a morte do pai e o aborto, tudo contribui para que ela erguesse esse muro. Ele fora útil, em certa época, pois enquanto menina e mocinha, ela tivera que prevenir-se contra a dor psicológica que a destruição de seu ego em desenvolvimento produzia; construiu forte defesa e desenvolveu grande habilidade de lutar.



Um sonho, no começo da análise, revelou a situação psicológica de Ana:



Uma cobra comprida e preta fugiu de sua gaiola e está solta. Ela entra numa caverna. Há um gato na caverna e ele fica com medo da cobra, mas não pode sair da caverna porque a cobra impede-lha a passagem. O gato mia para a cobra.



A cobra comporta numerosos significados simbólicos, e aqui pode ser interpretada de diversas maneiras. Pode ser vista como o falo desencarnado do homem que engravidou o feminino não desenvolvido, representado pelo gato. A natureza feminina de Ana, na época de sua primeira gravidez, ainda estava psicologicamente imatura, e o trauma do aborto, a que ela se submeteu a nível físico, e ainda psicologicamente reprimido, fixou sua verdadeira natureza feminina no útero, a caverna.

Ou então, a cobra pode ser interpretada como o poder masculino do pai. O pai positivo para a filha, em especial durante a adolescência, lha dá apoio à medida que ela vai se tornando consciente de sua natureza feminina dinâmica. Ela ampara e fortalece esse aspecto, contribuindo para que a mulher seja capaz de lavá-lo ao mundo dos relacionamentos. A mãe é modelo para os vários aspectos do feminino, enquanto a influência do pai serve como instrumento para torná-los mais conscientes. O pai de Ana dissera-lhe que ela era pessoa bonita e adorável, e sua natureza feminina que desabrochava cresceu com consciência desse aspecto. Mas a morte dele acabou esse desenvolvimento, e, como acontece com freqüência em tais situações, ele tornou-se super-homem na memória dela; segundo a frase de Harding, ele se tornou um “amante fantasma”, e nenhum homem real conseguia afrouxar essa ligação psicológica.



A cobra também é associada à Grande Mãe (veja a seguir) [Deusa cobra. Terracota, de kwossos, Creta. Período Minóico III Médio; Museu britânico.], representando mulher forte e de seios nus, com braços firmemente esticados para fora, segurando uma cobra em cada mão. A partir desse ponto de vista, o sonho mostra o aspecto maternal do feminino – conservador, estável e seguro – retendo o feminino dinâmico em caverna-útero. Na verdade, apaziguar o maternal, ser boa filha, com tudo o que isso implica em termos de expressão sexual restrita, foi o modo de vida ao qual Ana adaptou-se em seus anos de adolescência. Mais tarde, como adulta, continuou sendo uma menininha obediente e, como princesa-virgem, esperava ser salva por herói. O casamento foi apenas outro papel adaptativo, no qual ela continuava a reprimir seu lado feminino dinâmico.



No todo, o sonho representa situação psicológica onde o feminino dinâmico, associado com sexualidade e amor, está cativo no inconsciente. O desejo profundo de Ana por relacionamento maduro não podia realizar-se, porque a natureza feminina dinâmica nunca fora completamente desenvolvida ou compreendida. Mais positivamente, o sonho também mostrava a possibilidade de mudanças. A cobra está fora da gaiola (suas defesas se afrouxaram); o gato, símbolo do feminino, está encurralado, mas pronto para lutar. Agora a mulher tem a oportunidade de se tornar consciente das emoções que ela reprimia durante sua vida.



Durante a análise, Ana teve dois sonhos relacionados com banheiros, nos quais tinha que limpar a sujeira; em outros sonhos, manifestava inclinação por pequenos animais ou crianças machucadas. Depois de boa dose de trabalho sobre si mesma, sonhou com uma linda jovem, imagem de sua prostituta sagrada interna:



Estou deitada na grama com uma moça de uns vinte e poucos anos.

Seu cabelo é escuro e comprido, suas roupas, soltas e esvoaçantes, seu rosto é gracioso e natural (sem maquiagem). Estamos deitadas bem próximas, beijando-nos. Sensações ardentes e eróticas percorrem-me o corpo – juntamente com a sensação de grande bem-estar e de gostar muito dela.



Alguns meses mais tarde, através da imaginação ativa, Ana encontra seu animus estranho:





Estou sentada na clareira de uma floresta perto de pequeno lago que alimenta um riacho. Na extremidade da floresta há uma pequena capela de madeira. A porta está aberta. (Num exercício de imaginação ativa interior, eu tentava aproximar-me da capela e entrar, mas não conseguira, devido a uma barreira invisível que circulava a capela.) Estou sentada num tronco olhando para a capela, tentando decidir o que fazer em seguida. Então um homem puxando um cavalo vem saindo da floresta. Ele vem de longa viagem e parece cansado e triste. Sinto que o conheço de algum lugar, mas não me lembro de onde. Ele tem mais ou menos a mesma idade que eu, olhos azuis e sua barba e seu cabelo encaracolados são castanhos avermelhados, com fios grisalhos.



Ele senta-se sobre o tronco e começa a falar.

Ele: Até que enfim a encontrei. Venho tentando chamar a sua atenção há muito tempo.

Eu: Quem é você? Já nos conhecemos antes?

Ele: Muitas vezes. Eu sou aquele que você vem buscando o verdadeiro amor. Você tem-me visto em muitos homens, e confunde-me com eles. Você estava procurando nos lugares errados... Eu venho trazer-lhe plenitude de vida.

Eu: Então porque sinto vontade de fugir de você, de resistir a você?

Ele: Quando você não me vê, você não precisa lutar com sua própria criatividade e sua própria força.

Eu: Não acredito ser criativa e poderosa. Mas, diga-me, porque não consigo entrar na capela?

Ele: Ela está enfeitiçada... Ninguém entra lá há muitos anos. Há uma sacerdotisa presa numa armadinha lá dentro e não consegue sair.

Eu: Não há nada que possamos fazer?

Ele: Eis porque estamos aqui. Mas primeiro precisamos ir pescar. Depois vamos comer o peixe e refrescar-nos um pouco.





O feminino dinâmico, imaginado no sonho anterior de Ana como gato preso na caverna-útero maternal, aparece agora como sacerdotisa presa na capela. Esse desenvolvimento da imagem, de animal para humano, é conquista considerável. Embora a sacerdotisa ainda não esteja acessível à compreensão consciente, o animus estranho sai da floresta (o inconsciente) para tornar conhecida a sua presença e a aflição dela. Ele tem que ensinar Ana a pescar e a comer peixe.



O peixe, como a cobra, é antigo símbolo com muitos significados. Na literatura rabínica, é símbolo do Messias que vai agarrar o Leviatã e alimentá-lo para o Bendito no Paraíso. É símbolo do Salvador na tradição cristã. O peixe também pertende à deusa Astarte, que deu à luz Ichthys (termo grego para peixe), e Istar, em cuja casa havia o símbolo de um peixe, indicativo de fertilidade. Psicologicamente, escreve Jung, “o peixe significa um conteúdo autônomo do inconsciente”. Mais especificamente, ele “ocasionalmente significa a criança que ainda não nasceu, porque a criança antes de seu nascimento vive na água como peixe... O peixe é, portanto, símbolo de renovação e renascimento”.

A tarefa de Ana, então, consiste em incorporar o significado dessa poderosa imagem arquetípica, em integrá-la à consciência. Isso é necessário a fim de quebrar o feitiço da capela e libertar a sacerdotisa - a prostituta sagrada – símbolo do seu lado feminino dinâmico.





O estranho no portão



No exemplo acima, de uma mulher em sua viagem de individuação, o processo foi relacionado a eventos psíquicos internos. Mas ele não se dá apenas aí. Só se chega a discernir a natureza feminina instintiva, a prostituta sagrada encarnada no corpo feminino, através da ligação íntima com os outros. Como escreve Esther Harding, “ a espiritualidade da mulher deve ser destilada a partir da experiência concreta: não pode ser obtida diretamente”.

O animus interno estranho pode facilitar a conscientização, pela mulher, de sua sexualidade, mas requer um homem de verdade para concretizar a experiência do amor.





Os olhos do estranho penetram o ser interior da mulher; sua própria presença desperta a prostituta sagrada adormecida e a sensual natureza feminina lá contida. Ela pode se esconder atrás de padrões convencionais, negando sua relação inata e de direito com a deusa do amor, mas tal anteparo apenas retarda ou aborta seu desenvolvimento psíquico. Erich Neumann escreve: “A lua volta-se para o ego e ou se revela, ou vai-se embora e some na escuridão”.

O estranho surge como emissário do divino, a deusa da lua; se ele não é bem-vindo, a deusa também é desconhecida, e volta seu lado escuro para a mulher. A conseqüência é que a mulher permanece desligada de sua espiritualidade que viria conter e realçar sua natureza sexual.



Muitas vezes o homem humano que aparece é, literalmente, estranho. Não há romance ou intenção aberta de sua parte de salvá-la de sua existência vazia. E não há promessas de relacionamento duradouro. Tal encontro não pode ser planejado, pois isto seria tramar, tentando manipular o destino. A mulher aguarda ativamente receptiva, até que um dia o homem esteja simplesmente lá e que ela fique honestamente surpresa.

Existência desse tipo ocorreu na vida de Lisa. Ela era mulher de pouco mais de quarenta anos, bem formada e com carreira produtiva. Tivera muitos romances, fora casada por vários anos e estava agora vivendo com um homem, num relacionamento bastante conturbado. Ela tinha a atenção de muitos homens, uma vez que era espirituosa divertida e compassiva. Sabia instintivamente como relacionar-se com homens, o que era o seu triunfo, mas também sua maldição. Ela era a típica “mulher-anima” que inconscientemente intui e se torna a imagem ideal do homem, em detrimento de si própria.

Lisa estava profundamente insatisfeita, pois em seus relacionamentos ela sentia que seu ser mais interior nunca fora visto, nunca fora amado. A despeito de sua independência, de sua experiência de vida, de sua capacidade, ela ainda esperava pela chegada do seu herói, não para tomar conta dela, mas para amá-la.



Certa noite, depois de um dia de trabalho atarefado em outra cidade, ela arrumou-se para um jantar especial num restaurante caro. Lá encontrou “o estranho”, um homem estrangeiro que estaria voltando para seu país de origem no dia seguinte. Durante o curto espaço de tempo em que estiveram juntos Lisa conseguiu sentir a prostituta sagrada, o aspecto dinâmico de si mesma que honrava a deusa do amor. A beleza ressoante dessa mulher interna foi bastante valorizada e bem recebida pelo estranho.



Eis o que Lisa escreveu sobre sua experiência:



Eu estava um pouco alarmada com o que estava acontecendo comigo. Não estava descontrolada, mas o meu controle não estava como eu sempre conhecera, como se houvesse algo mais intervindo. Havia certo medo, e falei com ele a esse respeito... Ele falou do medo existencial como se conhecesse os meus pensamentos mais íntimos. Lembro-me da libertação que senti fazendo amor. Libertação não é a única maneira de explicá-lo. Era uma libertação maravilhosa! Debaixo do chuveiro, no dia seguinte, sentia felicidade, abraçava meu corpo, meu bonito corpo. Ria e cantava com sensação de recém-descoberta de energia e contentamento. Não havia sensação de vergonha ou culpa como sempre pensara que poderia haver, mas, ao contrário, a antecipação de volta para casa, para o homem com quem compartilha minha vida.



A libertação que Lisa sentiu deveu-se ao afrouxamento da ligação inconsciente com o aspecto da virgindade, algo bem parecido com a experiência de uma iniciada no templo do amor. Ela se libertava da culpa e da dependência inapropriada, libertava-se da compulsão de agir de determinada maneira de modo a ganhar ou manter atenção do homem.

O verdadeiro ser de Lisa tornou-se vivo quando uma prostituta sagrada foi constelada pelo estranho. Ela permitiu que seu corpo respondesse naturalmente ao chamado do amor, em vez de refugiar-se em sua cabeça para encontrar a resposta apropriada ou inteligente. Ela honrou a essência espiritual do Si-mesmo. Fazendo isso, ela conseguiu conhecer a beleza de seu corpo e de sua sexualidade, numa conexão autêntica com a deusa. O espírito despertou para a vida no corpo, e a mulher interna de lisa tornou-se uma plena participante de sua vida.

*

A mulher que aceita sua feminilidade física e psicológica vive em harmonia com a prostituta sagrada que vive dentro dela. Ela serve à deusa do amor, atendendo ao fogo sagrado de seus sentimentos internos. Trata-se do calor central de seu ser, e é preciso tomar cuidado para que ele não se incendeie ou se extinga. Só através do serviço prestado por livre escolha à deusa ela se liberta do jugo da servidão a muitos senhores, o que lhe dá capacidade de sacrificar exigências do ego – a necessidade de dominar, de possuir, de encontrar segurança na devoção de um homem. O ego então passa a admitir autoridade mais alta, o Si-mesmo.

As mulheres que têm consciência do seu verdadeiros ser feminino ouvem a sabedoria do coração; não permitem que essa sabedoria seja contaminada por normas ou ideais coletivos. Tal sabedoria (tanto em homens com em mulheres) reside no corpo e está relacionada com o princípio de Eros. Por meio dela as mulheres alcançam à compreensão de sua verdadeira natureza instintiva quando esta se une ao espírito, o homem estranho, no ritual do matrimônio sagrado.

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