O desenvolvimento da anima na meia-idade


O desenvolvimento da anima na meia-idade




Descontentamento, tédio e falta de entusiasmo generalizado são sintomas comuns de problemas na anima, particularmente na segunda metade da vida. Se o homem vive o feminino apenas como maternal – e, sendo assim, como algo a ser fertilizado ou temido – pode a influência transformativa da prostituta sagrada ser realizada? A monotonia interminável de relacionamento confortável e previsível é frequentemente, a Cilas e Caribes que provocam a busca interior da anima e do seu desenvolvimento.



Era o caso de João, homem de uns quarenta e poucos anos. Ele falava de profunda insatisfação com sua vida; faltavam-lhe energia e interesse tanto em casa quanto no trabalho. Era trabalhador extremamente dedicado, mas não via os frutos de seus esforços, e encontrava-se muito pessimista por causa de reveres freqüente. Esse pessimismo refletia-se também em seu casamento de dezoito anos, pois tinha a sensação de que tudo o que fizera até então não tinha valor algum. Costumava sentir uma resignação mórbida por seu “destino infeliz”, ainda que, ocasionalmente, demonstrasse uma nesga de esperança de que sua vida pudesse ser diferente.



Como sua analista, eu inicialmente senti João como pessoa rígida e obstinada, apegada a valores antigos de maneira inflexível. Ele tinha necessidade crescente do álcool, o que, em várias ocasiões, terminou em embebedamento. Isso, por sua vez, transformava-se em culpa, remorsos e depressão. Tais sintomas estão descritos por Jung como indicativo da necessidade de se estabelecer contato com a anima.



Depois da metade da vida... A perda da anima significa diminuição da vitalidade, da flexibilidade e da delicadeza humana. O resultado, via de regra, é rigidez prematura, aspereza, estereotipia, unilateralidade fanática, obstinação, pendatismo, ou então resignação, fastio, desleixo, irresponsabilidade e, finalmente, remollissment [letargia] infantil com propensão ao álcool. Após a meia-idade, porém, a conexão com a esfera arquetípica da experiência deve se possível, ser restabelecida.



Jung apontou para a semelhança entre conceito de “perda da alma” entre os primitivos e aquilo que acontece com o homem que perde o contato com a sua anima.



A perda da alma equivale à perda dilacerante de parte da própria natureza; é a desaparição e a emancipação de complexo que, daí por diante, torna-se usurpador tirânico da consciência, oprimindo o homem como um todo. Atira o homem para fora de seu percurso e o induz as ações cuja unilateralidade cega inevitavelmente conduz à autodestruição.



Era isso que se passava com João, pois no caso dele havia ego masculino muito forte e desenvolvimento consciente considerável, mas havia pouco reconhecimento da base feminina terrena e irracional do inconsciente.

Logo no princípio do processo analítico, a anima começou a insinuar-se, como no seguinte sonho:



Estou numa fazenda, num pasto, e decidi levar uma arma e caçar. Havia algumas construções que lembravam escolas. Minha mulher estava lá, mas todos os outros homens eram muito convencionais, do tipo beatos. Eu carregava uma garrafinha de uísque na mão, mas, para sentir-me mais à vontade, coloquei-a no bolso. Havia um celeiro redondo. Diriji-me para lá, mas ele ficava abaixo do nível do solo. Lá estava uma menina chamada Lola. Era prostituta. Eu quis fazer amor com ela, mas quando comecei ela disse: “Não, não faça isso”; eu sabia, no entanto, que ela queria e continuei. Vários homens tentaram interromper-me, um da companhia de força e outro do departamento de conservação. Não terminamos o ato e acordei frustrado e insatisfeito.





Os pastos abertos pertencem à Mãe Terra, e é aqui que o ego onírico busca a mulher (no vernáculo ir “caçar”) com o símbolo fálico na mão. Isso mostra a imagem de um tipo de homem voltado para o exterior, lado sombra de João que não transparecia com freqüência em suas maneiras cavalheirescas. A persona de João estava, de fato, relacionada com as “construções que lembravam escolas”: racional, intelectualizada e conservadora. Essa era a imagem com a qual ele se identificava (e, aparentemente, a que sua esposa via e apoiava). O lado “beato” de si próprio não é, aparentemente, compatível com sua natureza forte, “caçadora” erótica, que se encontrava reprimida e, portanto, conscientemente incongruente para João. O aspecto do uísque na garrafinha, seu lado sombra, estava de fato sendo dramatizado através de suas bebedeiras.

Nas associações de João em relação ao sonho, ele contou que na infância conhecera uma menina chamada Lola, que fora prostituta. Ele a descreveu como “astuta, porém limpa”. Ele também pensou no musical Damm Yankees, no qual a Líder, Lola, é mulher bonita que tem parte com o demônio. Ela canta uma canção: “Whatever Lola wants, Lola gets” (Tudo que Lola quer, Lola consegue”). Outra associação foi a de que a sua esposa era professora escolar, e que havia diferença gritante entre as duas mulheres do sonho, a esposa e a prostituta.



O celeiro onde a menina fora encontrada está relacionado com Deméter e Core (Perséfone) – Deméter, imagem associada com o grão, e Core, filha de Deméter, que fora raptada por Hades, o demônio. Aqui o ego onírico (a sombra de João caçador) encontra Lola (o aspecto dinâmico do feminino, sua própria Core interna) “abaixo do nível do solo”, o que, psicologicamente, indica seu ser contido no útero maternal do inconsciente, Lola é mulher indistinta, objeto a ser usado. O ato sexual é como estupro, uma vez que Lola não se entrega a ele livremente. O fato de um homem tomar uma mulher mais ou menos pela força, não levando em consideração seu “não”, é indicativo de atitude sexual primitiva, que aqui, aparentemente, é característica da sombra de João.

Os homens da “companhia de força” e do “departamento de conservação” são análogos àqueles comportamentos psíquicos auto-reguladores que controlam o fluxo de energia psíquica – a libido – e alertam contra o mau uso dos recursos naturais. O ato sexual foi buscado para autogratificação instantânea, sem nenhum respeito pela alteridade da mulher ou pela deusa do amor. O aparecimento dos outros homens para interromperem o ato sexual deixa João frustrado e insatisfeito.



O sonho perturbou João e levou-o a lutar conscientemente contra seu lado sombra e a reprimir atitudes em relação ao feminino, o que prendeu sua anima no estágio de Eva – como menina ainda intimamente ligada à mãe. A imagem do feminino como prostituta é promissora, mas nesse ponto ela é simplesmente usada pela sombra e não existe senso do sagrado.

Na luta com sua sombra, João também se tornou consciente de sua hostilidade, e até mesmo de seu temor, em relação à mulher. Novamente, esse lado de si próprio era tão incompatível com a sua auto-imagem consciente, que fora reprimido. Usando a técnica da imaginação ativa, ele fez amizade com sua Lola interna que, a certa altura lhe disse: “Você não me amava o bastante”. Em determinada ocasião, ele sentiu necessidade impulsiva de tocar música para ela, como que para criar um sentimento de harmonia entre ambos.

Gradualmente, houve transformação nas atitudes conscientes de João, como reflete o seguinte sonho:



Eu estava procurando bezerros no alto de um morro. Aproximei-me de uma casa velha e entrei. Havia quatro ou cinco mulheres lá dentro. Uma moça estava sentada a uma mesa de recepção, e havia uma outra atrás dela. Conversamos e rocei os meus lábios contra os dela. A segunda moça sussurrou-me que queria que eu fosse com ela. Eu a segui por vários quartos. Ela estava nua e era surpreendentemente bonita. Entramos num quarto no qual havia palha no chão, como num pombal. Senti como se ela fosse ao mesmo tempo meretriz e amante.



“Procurado bezerros” indica a crescente percepção de João em relação à deusa que, como foi mencionado anteriormente, era frequentemente imaginada com coroa com duas meias-luas que se assemelhavam a chifres de vaca. Os bezerros, imagem ou representação da deusa “recém-nascida”, devem ser encontrados. Esta procura leva o homem a uma casa de mulheres.

A casa, no sonho, é reminiscente de bordel; o fato de ser velha pode ser indício de que João estivesse relegando ao passado atitudes coletivas em relação ao sexo e mulheres. Mas, devido à sua atmosfera erótica, a causa pode também indicar diferenciação crescente em sua atitude pessoal em relação ao feminino, movimento no sentido de buscar e valorizar as mulheres como seres sexuais.



Muitas vezes, quando um homem sonha com várias mulheres, uma se aproxima e se apresenta; esta detém uma qualidade especial e é particularmente atraída pelo ego onírico. Aqui, tal mulher torna-se guia do ego onírico através de labirinto desconhecido. Essa mulher sedutora e receptiva à sua potência masculina; ela não é pressionada nem forçada, como no sonho anterior. Há uma atmosfera humilde e despretensiosa, o que se denota pela palha no chão. João ainda é ambivalente, sentindo a mulher no sonho tanto como prostituta como pessoa capaz de amar. Ao mesmo tempo, ele se sente fascinado por sua beleza, encanto e promessa de amor.



O sonho representa o começo do estágio de helena do desenvolvimento da anima, o que se manifesta através dos esforços de João no sentido de buscar conexão interna com a deusa doa mor. Fascinado, ele a segue por lugares desconhecidos do domínio feminino. Agora ele demonstra certo respeito – fica aterrado por sua beleza límpida, atitude bem diferente da do sonho anterior, onde o masculino tinha o “direito” de violentar o feminino.



A anima agora torna-se mais receptiva, mais acessível. Aqui encontramos forte paralelo com o estranho que procura honrar a deusa; João aproxima-se da prostituta sagrada e é bem recebido por ela. Ao ser receptiva para com ele, ela traz a novo reconhecimento do Outro, sua própria mulher interior.

Em sua realidade externa, João experimentava grande confusão; como ele mesmo o exprimiu, “meu mundo está virando de cabeça para baixo”. À medida que novos elementos psíquicos começaram a se tornar conhecidos, outros estavam em estágio de transformação; naturalmente, havia um senso de desorientação. As crostas endurecidas das velhas atitudes lentamente se dissolviam, enquanto vários esboços de atitudes novas se formavam. Ainda assim, apesar de sentir-se em meio ao caos, João ia aceitando novas dimensões de vida que lhe proporcionavam excitamento e senso de jovialidade. Ele começou a experimentar coragem inusitada, distante de sua resignação anterior, que o impelia a perseguir novos caminhos de auto-expressão através da escrita, da música e da descoberta da literatura clássica, contrabalançando assim a superdedicada ligação com o trabalho.



Em resumo, a prostitua sagrada, na psicologia masculina, corresponde ao aspecto da anima que funciona como força psíquica propulsora e transformadora. Ela tem relação direta com a compreensão consciente e com a integração no homem de sua própria natureza contra-sexual. Ela modifica a auto-imagem do homem, seus valores e atitudes em relação à mulher em sua vida externa.



O aspecto de prostituta sagrada da anima traz alegria e riso, e torna o homem capaz de ver a beleza e sentir as emoções do amor. Como uma imagem-alma relacionada com a deusa do amor, aspecto feminino divino do Si-mesmo do homem, ela transforma a expressão sexual instintiva em fazer amor, experiência estimulante, de modo algum incompatível com sua natureza espiritual.

Em nosso mundo moderno, a imagem da prostituta sagrada está enterrada sob os valores religiosos, políticos e econômicos do patriarcado. Ela ainda vive, entretanto, e pode ser redescoberta como companheira-de-alma por qualquer homem que possua o desejo e a coragem de sacrificar papéis de persona masculinos estereotipados e valores coletivos antiquados. Estas são as ofertas que ele traz à prostituta sagrada no templo do amor, lá ela o aguarda, pronta para iniciá-lo no significado de sua vida e despertar sua consciência para uma nova sabedoria.

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