Estresse sob o Ponto de Vista da Psicanálise [1]

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Debatedor: Arlete Mourão[2]





Em primeiro lugar, agradeço a Isabel Maria e ao Centro de Estudos Psicanalíticos pelo convite e oportunidade de contribuir para este debate.





Começo por enfatizar que o termo ESTRESSE não faz parte da terminologia psicanalítica, embora freqüente muito o discurso dos analisantes, que a ele se referem em diferentes contextos de sofrimento subjetivo, em particular o da angústia, apesar de não terem muito claro ao que é mesmo que estão se referindo. Há um uso generalizado e indiscriminado dessa expressão, no qual é confundida com um desgaste emocional diante de conflitos psíquicos que insistem, que se repetem e que, em psicanálise, são chamados de compulsão a repetição[3].





Tudo indica que essa confusão se deve à vulgarização de um termo que foi, originalmente, importado da Física para a Medicina e a Biologia, e depois, destas, para a Psicologia e Sociologia. Aí, ao estresse físico passaram a se superpor o estresse psíquico e estresse social.





De qualquer forma, o quadro não deixa de se referir a uma sintomatologia orgânica, embora possa ter causas também psíquicas, como fica ilustrado nas seguintes definições[4]:





- - O estresse (Síndrome Geral de Adaptação) é uma ocorrência fisiológica, é uma atitude biológica necessária para a adaptação do organismo a uma situação nova, situação de agressão física, ou situação entendida como ameaça;



- - O estresse refere-se a uma síndrome geral de adaptação (SGA), ou seja, ao conjunto de reações orgânicas, no nível dos sistemas nervoso, endócrino e imunológico, em resposta a estímulos internos e/ou externos, que podem ser tanto de ordem física quanto psíquica.





Como se vê, embora podendo ser causada por estímulos psicológicos, trata-se de uma síndrome orgânica, biológica, que afeta o corpo em escala que vai desde um estado de alerta, passando por uma resistência (no caso de estresse contínuo), até a exaustão ou esgotamento. É por isso, então, que ela não faz parte do campo da Psicanálise, na medida em que esta não se ocupa do corpo, pelo menos não do corpo biológico.





O objeto da Psicanálise é o inconsciente. Nele, as coisas, de um modo geral (inclusive o corpo), são tomadas em termos de suas representações[5], as quais se instituem, basicamente, nas relações intersubjetivas.





Por isso, minha contribuição aqui seria talvez trazer algumas considerações rápidas e gerais[6] sobre a natureza desse inconsciente, e sobre como o estresse poderia ser pensado em relação a ele.





Pois bem, o inconsciente refere-se a uma instância da subjetividade que, como o nome aponta, não está acessível, mas é determinante na vida das pessoas – determina sua visão de mundo, sua identidade, seus ideais, suas escolhas amorosas, sociais, de trabalho e, inclusive, de sua forma de adoecer fisicamente. Ele é o efeito do encontro da natureza do sujeito humano (do real do seu corpo) com o simbólico, com a cultura. Esse encontro abre uma espécie de brecha, de distância entre sua condição de “ser natural” e de “ser de linguagem” imerso na cultura. É nessa brecha que se institui o inconsciente, que, portanto, já nasce numa perspectiva de defasagem, de algo que está faltando... . Já nasce com uma tensão original, ou estrutural.





Junto com o inconsciente, nasce o desejo, que é aquilo que orquestra a subjetividade, que organiza o psiquismo – um desejo que nada tem a ver com instinto sexual. Sua natureza é justamente a de ser anti-natural, ou seja, ser completamente afastada do biológico, inserindo-se no campo do impossível, do inatingível, do “sempre por alcançar”, e onde os objetos de satisfação são da ordem das representações – o que instaura uma dinâmica de tensão estrutural e permanente. Nesse campo, a “energia sexual” – libido própria do ser humano perpassada por essa condição de “ser de cultura” – é administrada pelo desejo, dentro de um processo que não é exclusivamente orgânico ou fisiológico, mas é pulsional.





Em Psicanálise, chama-se de “pulsão” o conceito de alguma coisa que é intermediária entre o somático e o psíquico. Ela se apóia na necessidade biológica para transformá-la em outra coisa, em algo que pode ser satisfeito até, ou especialmente, com palavras – e isso é o desejo, que, para se viabilizar, dinamiza-se num “processo pulsional”, e não fisiológico.





Esse processo caracteriza a busca de satisfação humana voltada para objetos que se afastaram de sua relação com as necessidades biológicas e ficaram impregnados por sua relação afetiva com o outro, a começar a relação com a mãe – primeiro outro da criança –, que se constitui como matriz simbólica da intersubjetividade. Essa relação faz com que a necessidade se transforme em demanda de amor, ou em demanda de reconhecimento, quer dizer, em apelo afetivo dirigido ao Outro.





Nessa passagem, onde aquilo que se quer precisa ser nomeado – e nomeado com palavras cujo sentido é externo[7] ao sujeito –, alguma coisa se perde. Alguma coisa fica como mítica, pois estará sempre relacionada a algo que não existe, a “algo a mais” [o acréscimo afetivo] que veio na primeira experiência de satisfação, quando a satisfação foi imediata e a redução da tensão foi direta e plena, não precisou ser pedida.





Dessa perda, desse impossível de ser reencontrado ou revertido, institui-se o desejo, em sua condição de desejo inconsciente, eternamente insatisfeito, o que imprime, molda, determina a subjetividade, de tal forma, que ela terá sempre um caráter de alienação. Aí, também os sentidos que o sujeito irá dando a si mesmo – à sua identidade, à suas necessidades, ao seu corpo, e às coisas de um modo geral – ficam impregnados desse sentido externo[8]. Em outras palavras, a subjetividade se constitui dentro de um caráter de exterioridade radical e estrutural – exterioridade, ou alteridade, onde o desejo só pode exprimir-se através dessa demanda de amor, demanda de reconhecimento[9].





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Bem, para o que nos interessa aqui, ou seja o estresse, o mais importante disso tudo, a meu ver, é esse caráter de alienação – de exterioridade estrutural da subjetividade, na medida em que isso caracteriza um campo de tensão, de ansiedade, a qual, em Psicanálise, é chamada de angústia .





Enquanto sinônimo da ansiedade (que é fisiológica), a angústia é a versão subjetiva do estresse. Ela é o afeto subjetivo que regula os processos pulsionais. É o afeto que decorre dessa divisão subjetiva, dessa exterioridade, onde o sentido vem de fora, e o sujeito fica à mercê do Outro. Ele comparece, predominantemente, nas turbulências das relações intersubjetivas, e implica perda de sentido, implica o momento em que não se consegue nomear alguma coisa.





Tal como no estresse, a angústia pode chegar a pontos intoleráveis, fazendo uma pessoa adoecer não só psiquicamente, mas também fisicamente.





Diferente da ansiedade, que é provocada por ameaças concretas, a angústia é acentuada por coisas do campo subjetivo, coisas geralmente da ordem da perda de amor, da perda de reconhecimento, da ordem do desamparo afetivo.





Aí, o sentido da angústia – ou melhor o não sentido, pois ela se torna crucial exatamente nos momentos em que um sujeito se perde de seus sentidos – é da ordem da singularidade de cada um, que por isso lhe imprime reações particulares, que vão desde a tristeza, passando pela depressão, a mania, as somatizações, as doenças psicossomáticas, as doenças orgânicas, e, até o suicídio.





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A partir dessas colocações, e para concluí-las, parece-me imprescindível diferenciar o quadro subjetivo de um quadro físico do estresse, ressaltando três pontos:





A noção de realidade



Em termos da subjetividade, a noção de realidade – essa realidade à qual um sujeito deve se “adaptar” quando há um estímulo “estressor” – refere-se à realidade psíquica.





Para a Psicanálise, a realidade como tal não pode ser apreendida. Ela passa por um entrelaçamento com as dimensões do Simbólico e do Imaginário, o que faz com que tenha contornos próprios para cada sujeito, de acordo com sua historia particular.





É o caso, por exemplo, da realidade de um atentado, que não é a realidade de um atentado para um homem bomba; ou, da realidade de um elevador, que não é a realidade de um elevador para um claustrofófico; ou ainda, a realidade imposta pela globalização, que não é a mesma vivida por todos. Aí, por mais que as pressões impostas ao sujeito pela modernidade ou pós-modernidade, por exemplo, aumentem seus conflitos, a atribuição de valores aos acontecimentos da realidade tomando-os ou não como ameaçadores e estressantes, vai depender da constituição da subjetividade de cada um.





A noção de corpo



Esse corpo, que é “ameaçado pelas circunstâncias estressoras”, do ponto de vista subjetivo, refere-se ao corpo representado, fruto da interação subjetiva sujeito/outro.





Aí, basicamente, o corpo é um signo (significante) que intermedia as relações intersubjetivas, onde o que agride é da ordem da interpretação do que se passa nessas relações. Nesse sentido, o que é vivido como agressão depende muito mais do agredido que do agressor.





Assim, o corpo ameaçado é o corpo não desejado, é o corpo não idealizado, é o corpo desamparado, é a espinha no rosto, é o cabelo arrepiado, é a careca que brilha, é o nariz grande, é o pinto pequeno..., enfim, é corpo que, para além das necessidades, é regido pelas pulsões (sexuais), pela demanda (de amor) e pelo desejo (sexual).





A noção de tratamento



O campo da Psicanálise tem uma relação particular com a noção de tratamento – do tratamento subjetivo –, que não se confunde com o da Medicina. Neste último, trata-se de doenças, trata-se de um saber sobre as doenças de tal forma que se possa preveni-las e/ou curá-las, trata-se de um saber sobre o qual o médico é o portador e o sujeito é o paciente.





Na clínica psicanalítica, no discurso analítico, a lógica é outra. O saber em questão é o saber do inconsciente, é o saber do próprio sujeito, e a noção de tratamento se refere a um processo que se orienta pelo próprio analisante, pelo sentido que este dá aos seus sintomas, e não pelo sentido que o analista poderia lhes atribuir.





Aliás, se existe uma idéia que define bem uma experiência analítica, essa é a de permitir a um sujeito reencontrar seus próprios sentidos, o sentido de seus sintomas[10]. Afinal, os sintomas são estruturados em função da exterioridade subjetiva, na qual o sujeito se perdeu de suas próprias referências, na qual sua relação com o outro se tornou excessivamente dependente, na qual ele se perdeu de seu desejo (no desejo do Outro) e ficou prisioneiro das demandas externas – demandas dos parceiros, dos familiares, dos “chefes”, etc., enfim, do outro de modo geral. É isso que lhe é estressante.





Aí, o tratamento analítico não visa a doença, mas o doente; visa, senão desconstruir as amarras que o simbólico e a cultura imprimem ao sujeito, e que lhe são estruturais, pelo menos, permitir que ele assuma a responsabilidade por suas próprias questões (identificações, demandas, escolhas, doenças, conflitos, etc), o que se traduz por uma “liberdade”, ou “distensionamento” imprescindível.





Isso faz com que o sujeito consiga prescindir de reações orgânicas destrutivas, exatamente, por uma elaboração dos motivos psíquicos subjacentes a tais reações – elaboração que nem sempre é consciente –, o que se faz, exclusivamente, através de uma escuta onde aquilo que conta é o que é contado, inclusive do sintoma físico, enfim, de uma escuta que privilegia o sujeito (no seu não senso), e não o seu ego, ou o seu sintoma.





E para concluir finalmente, trago uma definição de estresse dada por uma analisante, recentemente, depois de ela ter chegado se queixando de estar muito estressada, e eu lhe ter perguntado sobre o que estava chamando de estresse, ao que ela respondeu:





“É a minha falta de capacidade de fazer coisas, diante de um volume enorme de coisas a serem feitas”, e acrescentou: “É horrível estar aquém do que esperam que eu faça. Isso me pressiona !”. Quando eu lhe disse que existia aí a vivência de uma pressão externa que se somava a uma pressão interna, ela disse: “Pois é, pressão mais pressão vira combustão” !





Acho que isso ilustra bem o campo onde as questões são tomadas pela Psicanálise, ou seja, o campo das representações, o campo dos deslocamentos e condensações, o campo das metáforas e metonímias[11], enfim, o campo do INCONSCIENTE.



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